terça-feira, 21 de abril de 2020

O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos


Neste período de introspecção e de quarentena por conta da pandemia provocada  pelo vírus Covid-19, novas leituras são fundamentais na percepção do mundo, nas releituras e projetos que vem sendo gestados ao longo da história da humanidade.



Tive a oportunidade de ler o Livro “O Bem Viver", de autoria do escritor Alberto Acosta, que logo no prefácio  deste livro, o historiador e escritor Célio Turino, apresenta o autor como: ”um dos principais ideólogos do início da Revolução Cidadã no Equador,  tendo sido um dos responsáveis pelo plano de governo da Alianza País, partido encabeçado por Rafael Correa, cuja ascensão à Presidência da República, em 2007, deu inicio a uma série de transformações nesta hermosa nação localizada no centro do Mundo. O equador tornou-se,  assim, referência para utopistas e lutadores sociais. Acosta também foi ministro de Energia e Minas, além de ter dirigido os trabalhos da primeira Assembleia constituinte do planeta a reconhecer  direitos à Natureza, nossa Pacha Mama, a Mãe Terra.” (página 21)



O livro, em todas as suas 262 paginas, vai explicitar e fundamentar o princípio teórico do  Bem Viver,  definindo que “ O bem Viver é uma filosofia em construção, e universal, que parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, mas que está presente nas mais diversas culturas. Está entre nós, no Brasil, com o teko porã dos graranis. Também está na ética e na filosofia  africana do ubuntu – ’eu sou porque nós  somos’. Está no ecossocialismo, em sua busca por resignificar o socialismo centralista e produtivista do século 20. Está no fazer solidário do povo, nos mutirões em vilas, favelas ou comunidades rurais e na  minga ou mika andina. Está presente na roda de samba, na roda de capoeira, no jongo, nas cirandas e candomblé. Está na Carta Encíclica laudato si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da Casa Comum. Seu significado é viver em aprendizado e convivência com a natureza, fazendo-nos reconhecer que somos ‘parte’ dela e que não podemos continuar vivendo  ‘à parte’ dos  demais seres do planeta”.(páginas 22/23)



A ousadia dos apontamentos do autor se manifesta sobejamente em todos argumentos fundamentados a partir de inúmeros autores citados ao longo  da escrita, que  descrevem o Bem Viver como: “Quando  falamos do Bem Viver, propomos, primeiramente, uma reconstrução utópica do futuro a partir da visão andina e amazônica. No entanto, esta aproximação não pode ser excludente ou produzir visões dogmáticas. Deve complementar-se e ampliar-se, necessariamente,  incorporando outros discursos e outras propostas provenientes de diversas regiões do planeta espiritualmente aparentadas em sua luta por uma transformação civilizatória.”(página74)



Acrescenta ainda o autor que “O Bem Viver, assim, se traduz em uma tarefa descolonizadora. Além disso, também deveria ser despatriarcalizadora. Para cumpri-la, será particularmente necessário um processo de descolonização intelectual nos âmbitos políticos, social, econômico e, claro cultural.” (página 80)

Destaca-se o recorte levantado pelo autor na definição do que significa este projeto: ”Aqui há um ponto de encontro com as cosmovisões indígenas, em que os seres humanos não apenas convivem com a Natureza de maneira harmoniosa, mas formam parte dela e, em última instância, são a natureza.”(página 95)



Ao citar Galileu Galilei (1564-1642) e Charles Darwin ( 1809-1882), destaca a importância da  razão científica em detrimento dos dogmas religiosos, “Conhecer as transformações sofridas pela espécie humana desde sua primeira forma de vida, passando pelos macacos, é um resultado da ciência ocidental (em plena era imperialista) que irrita aos fundamentalistas religiosos, mas que  não contradiz – pelo contrário, apoia- o sentimento de reverência e respeito a Natureza.”(página 111)



A ruptura com a cosmovisão dos nativos em nome da dominação, conquistas e acumulação de riquezas, perdura até os dias atuais, levando desta forma o "desenvolvimento" das economias europeias  com seus impérios, gerando destruição e matanças generalizadas.



 “À viagem de Cristóvão Colombo se seguiram a Conquista e a colonização. Com elas, em nome do poder imperial e da fé, tiveram início uma exploração sem misericórdia de recursos naturais e a destruição de muitas culturas e civilizações. O escritor uruguaio Eduardo Galeano diz claramente: “Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a Conquista europeia castigou a adoração da Natureza, que era pecado ou idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre Natureza e a gente, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda América, e no mundo, seguimos sofrendo as consequências de divorcio civilizatório.” (página113)



Filosoficamente, estamos diante de um dilema que deve ser repensado e reescrito, uma vez que “Escrever esta mudança histórica, ou seja, a transição de uma concepção antropocêntrica para uma sócio-biocêntrica, é o maior desafio da Humanidade, se é que não queremos colocar em risco a existência do próprio ser humano sobre a terra.” (página 129)



Esta temática tem sido objeto de inúmeras conferências mundiais, (Rio de Janeiro em 1992, Joanesburgo em 2002), além de seminários, encontros e palestras, e vem ganhando capilaridade  junto aos setores mais críticos e conscientes da sociedade. 



Muitos países resistem diante de novas possibilidades e revisões históricas, sempre em nome da ordem, do progresso e do  desenvolvimento, mas os avanços são significativos e irreversíveis .



Todos os caminhos e esforços vão no sentido de se reestabelecer o reencontro entre o ser Humano e a Natureza, até por que, dentre várias contribuições, inclusive não indígenas, nos deparamos com  inúmeras elaborações consistentes, a saber: “destacamos o ambientalista inglês James Lovelock,  as biólogas norte-americanas Lynn Margulis e Elizabeth Sahtouris e o filósofo brasileiro  José Lutzenberger. Esses pensadores caracterizam  a Terra – rebatizada  como Gaia – como um superorganismo vivo já nos anos 1970. Nessas visões, como ressalta o teólogo  brasileiro Leonardo Boff, é preciso conhecer o caráter inter-retro-conexões transversais entre todos os seres: tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos e em todas  as circunstâncias: é a relacionalidade do mundo indígena.”  (página 144)



 “A Humanidade não é uma comunidade de seres agressivos e brutalmente competitivos. Esses valores foram criados e acentuados por civilizações que favoreceram o individualismo, o consumismo e a  acumulação agressiva de bens materiais -  características que estão no gene da civilização capitalista.” (página 200)



O autor vai ainda falar de outras possibilidades e formas de equidades, destacando a economia solidária, onde “a redistribuição da riqueza-da terra e da agua, por exemplo - e a distribuição da renda, com critérios de equidade, assim como a democratização do acesso aos recursos econômicos, tais como o crédito, estão na base desta economia solidária. As finanças devem cumprir um papel de apoio ao aparato produtivo em vez de ser mais um instrumento de acumulação  e concentração de riqueza, como ocorre com a especulação.” (página 201)



É uma leitura que desperta novas possibilidades e desafios  na percepção de novos paradigmas, buscando na origem, aquilo que tentaram destruir ou negar, mediante o   caráter predatório do capitalismo. 



Ana Esther Ceceña afirma que: “Dentro do capitalismo não há solução para a vida; fora do capitalismo há incertezas, mas tudo é possibilidade. Nada pode ser pior que a certeza da extinção. É tempo de inventar, é tempo de ser livre, é tempo de viver bem”.



Finalizo este importante registro com as sábias palavras de Umbeto Eco:
“Assim, senhor Nicetas, quando eu não era vítima das tentações deste mundo, dedicava minhas noites a imaginar outros mundos. Um pouco com a ajuda do vinho e outro tanto de mel verde. Não há nada melhor do que imaginar outros mundos para esquecer o quanto é doloroso este em que vivemos. Pelo menos eu pensava assim naquele momento. Ainda não compreendera que imaginando outros mundos, acabamos por mudar também este nosso”.



Minha filha me emprestou este livro para eu suportar e passar o tempo neste momento de reclusão e distanciamento dos humanos. Coincidentemente, esta leitura me ajudou entender a busca desta harmonia com a natureza, compreender o limite do desenvolvimento capitalista, e, a persistir no caminho trilhado até agora, a existência humana estará ameaçada concretamente neste planeta.



Por conta de um “super vírus”, estamos mergulhados num conflito existencial, onde o ser humano passa a ser descartável, desumanizado, onde grandes e pequenas potências econômicas estão diante do dilema  de um desenvolvimento ilimitado, ou radical  revisão histórica, para se assegurar os direitos elementares colocando o primado da vida acima dos interesses econômicos, haja vista  que sequer sabemos se estaremos vivos diante do descontrole abrupto (desenvolvimento/Natureza) em relação  ao mundo em que vivemos.



Os poderosos brincam com a vida dos considerados "sucatas humanas", negligenciando com os que produziram as riquezas ao longo da história e nesse momento sentenciam, sem direito a defesa, quem serão os condenados da terra, abandonandos nos corredores da morte, no tribunal da não vida, negando-lhes o direito de respirar e nos tirando o direito de acompanhar e chorar os nossos mortos, que se transformam em números estatísticos, numa desumanização sem precedente.



Viver, lutar e construir um Bem Viver é preciso!

Aldo Santos . Ex-vereador em SBC, militante junto  às entidades de filosofia - Aproffesp/Aproffib, dos movimento sociais e do Psol.

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