Em debates no campo da filosofia, tomei contato com o
filosofo Achille Mbembe, que publicou dentre outras obras, o livro
“Necropolítica”, pela Editora N-1
Edições.
Achille Mbembe é um renomado professor de História e Ciências
Políticas na África do Sul e nos Estados Unidos, nas respectivas universidades
Witwatersrand e Duke University.
Na resenha publicada por Rômulo de Andrade Moreira, que é
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de
Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, são destacadas
importantes citações do livro que estão intimamente sintonizadas com o contexto
político que estamos vivenciando.
Para o procurador Rômulo de Andrade Moreira, “Neste ensaio, o
autor parte do pressuposto “que a expressão máxima da soberania reside em
grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve
morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da
soberania, seus atributos fundamentais.”
Assim, ao final e ao cabo, “ser soberano é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.”
Logo, neste sentido, “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem
não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”
Rejeitando a crença “romântica” da soberania como algo em
“que o sujeito é o principal autor controlador do seu próprio significado”,
Mbembe preocupa-se, sob uma ótica inteiramente diversa, “com aquelas formas de
soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a
instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de
corpos humanos e populações’.” (Aqui ele revela a influência de Foucault em sua
obra, desde a ideia de “biopoder”, desenvolvida pelo filósofo francês).”
Observa o professor
que: Nada obstante a influência de Foucalt, Mbembe procura demonstrar “que a
noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de
submissão da vida ao poder da morte.”
“Neste sentido, criticando o que ele chama de um “discurso
filosófico da modernidade”, demonstra muito afirmativamente que das
“experiências contemporâneas de destruição humana” pode muito bem ser extraída
“uma leitura da política, da soberania e do sujeito”, a partir da consideração
de “outras categorias fundadoras menos abstratas e mais palpáveis, tais como a
vida e a morte.”
Relacionando a noção de biopoder (Foucault) com dois outros
conceitos – estado de exceção e estado de sítio (Agamben) -, Mbembe mostra de
forma bastante clara como “o estado de exceção e a relação de inimizade
tornaram-se a base normativa do direito de matar”, e como o poder “apela à
exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo” para justificar o
extermínio de outrem.
Desde este ponto de vista, o ensaísta africano considera que
a escravidão “pode ser considerada uma das primeiras manifestações da
experimentação biopolítica”, razão pela qual “qualquer relato histórico do
surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão.”
Para ele, “a condição de escravo resulta de uma tripla perda:
perda de um ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto
político”, ocasionando “uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma
morte social (que é expulsão fora da humanidade).” Assim, ele “é mantido vivo,
mas em ‘estado de injúria’, em um mundo espectral de horrores, crueldade e
profanidade intensos.” A sua vida, portanto, “é uma forma de morte-em-vida” e
“propriedade de seu senhor” (Susan Buck-Morss).
Nada obstante a sua situação de quase-morto (a expressão é
minha), o escravo “é capaz de extrair de quase qualquer objeto, instrumento,
linguagem ou gesto uma representação, e estilizá-la”, sendo “capaz de
demonstrar as capacidades polimorfas das relações humanas por meio da música e
do próprio corpo, que supostamente pertencia a um outro.” O caso brasileiro
confirma esta afirmação.
Voltando os olhos para o fenômeno da colonização, Mbembe
entende – e concordo com ele – que “as colônias são semelhantes às fronteiras,
habitadas por ´selvagens`, não organizadas de forma estatal e não criaram um
mundo humano; são o local por excelência em que os controles e as garantias de
ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de
exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’.”
Por conseguinte, “aos olhos do conquistador, ‘vida selvagem’
é apenas outra forma de ‘vida animal’, carecendo os selvagens do caráter
específico humano, da realidade especificamente humana, de tal forma que,
‘quando os europeus os massacravam, de certa forma não tinham consciência de
cometerem um crime’.” (Arendt).
Talvez para ilustrar, Mbembe cita o caso palestino como “a
forma mais bem-sucedida de necropoder”, quando “populações inteiras são o alvo
do soberano, vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo, a vida
cotidiana é militarizada e é outorgada liberdade aos comandantes militares
locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar.” Esta
população sitiada experimenta “uma condição permanente de ‘viver na dor’:
estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo
lugar.” A desastrosa – sob todos os aspectos – intervenção militar no Rio de
Janeiro talvez sirva para ilustrar esta afirmação.
O livro também trata das guerras contemporâneas, as guerras
da era da globalização, que “visam forçar o inimigo à submissão,
independentemente de consequências imediatas, efeitos secundários e ‘danos
colaterais’ das ações militares.” Nestes conflitos, citando Bauman (“Wars of
the Globalization Era”), “os pilotos convertidos em computadores quase nunca
têm a chance de olhar suas vítimas no rosto e avaliar a miséria humana que têm
semeado. Militares profissionais do nosso tempo não veem cadáveres nem
ferimentos. Talvez eles durmam bem; nenhuma pontada em suas consciências os
manterá acordados.”
A obra também faz referência ao surgimento das Máquinas de
Guerra, “surgidas na África durante o último quarto do século XX”, com
“características de uma organização política e de uma empresa comercial,
podendo operar mediante capturas e depredações e até mesmo cunhar seu próprio
dinheiro”, tornando-se “rapidamente mecanismos predadores extremamente
organizados.”
Mbembe também estuda o caso do “homem-bomba”, questionando
“qual seria a diferença fundamental entre matar usando um helicóptero de
mísseis, um tanque ou o próprio corpo?” Neste caso, “minha morte anda de mãos
dadas com a morte do outro, logo homicídio e suicídio são realizados no mesmo
ato.”
O homem-bomba “transforma seu corpo em máscara que esconde a
arma que logo será detonada e, ao contrário do tanque ou míssil, que é
claramente visível, a arma contida na forma do corpo é invisível, dissimulada,
fazendo parte do próprio corpo”, de uma tal maneira “que, no momento da
detonação, aniquila seu portador e leva consigo outros corpos, quando não os
reduz a pedaços. O corpo não esconde apenas uma arma, ele é transformado em
arma, não em sentido metafórico, mas no sentido verdadeiramente balístico.”
Ao contrário das guerras convencionais, quando a lógica
“consiste em querer impor a morte aos demais, preservando a própria vida”,
aqui, na lógica do “mártir”, “a vontade de morrer se funde com a vontade de
levar o inimigo consigo, ou seja, eliminar a possibilidade de vida para todos”,
certamente a partir “de um processo de abstração com base no desejo de
eternidade.” Neste sentido, “o corpo sitiado é transformado em mera coisa,
matéria maleável, e depois, a maneira como é conduzido à morte – suicídio – lhe
proporciona seu significado final.” Este corpo converte-se “em uma peça de
metal cuja função é, pelo sacrifício, trazer a vida eterna ao ser.”
Enfim, trata-se de um livro de atualidade impressionante, e
serve para refletirmos sobre o caso brasileiro – de ontem e de hoje. Lembremos,
por exemplo, que uma das principais propostas do então candidato ao Governo do
Rio de Janeiro – hoje eleito – foi instruir as forças de segurança a “abaterem”
suspeitos que sejam vistos portando fuzis, mesmo que eles não atirem contra os
policiais.
Já em São Paulo, o então candidato – também o escolhido –
alertava que “não façam enfrentamento com a Polícia Militar nem a Civil,
porque, a partir de 1º. de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão. Se fizer o
enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar.”
Na Bahia, o atual Governador – reeleito -, comentando acerca
de uma ação da Polícia Militar durante um confronto no bairro do Cabula, em
Salvador – fato ocorrido na madrugada do dia 06 de fevereiro de 2015, que
resultou na morte de doze pessoas, episódio que conhecido como “A Chacina do
Cabula”, e que foi objeto de um pedido de federalização feito ao Superior
Tribunal de Justiça pela Procuradoria Geral da República -, afirmou o
Governador, numa comparação estúpida!, que o policial “é como um artilheiro em
frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a
bola dentro do gol, pra fazer o gol. Depois que a jogada termina, se foi um
golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser
repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser
condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a
bola teria entrado.”
O próprio candidato a Presidente da República – que
desgraçadamente também venceu – apresentou, como Deputado Federal, um projeto
de lei para deixar expresso no Código de Processo Penal e Código de Processo
Penal Militar que policiais não poderiam ser presos em flagrante caso matassem
civis em supostos confrontos.
Portanto, as noções de “necropolítica” e de “necropoder”
desenvolvidas pelo autor ajudam a compreender “as várias maneiras pelas quais,
em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de
provocar a destruição máxima de pessoas e criar ´mundos de morte`, formas
únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas
a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ´mortos-vivos”.”(https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/)
A arquitetura do texto está bem definida e as concepções se
aplicam no contexto em que estamos vivendo, nos confrontando com esta crise sanitária da pandemia do Covid-19,
em que, na tentativa de subordinar a vida à economia, como fazem alguns governantes
genocidas, que, ao arrepio das leis e do estatuto da ciência, submetem
grandes contingentes populacionais às agruras da morte.
Quanto a crise mundial da pandemia do Covid-19, só sabemos de
concreto quando a mesma teve início, mas
não sabemos quando teremos uma trégua ou quando teremos remédios ou vacinas
para debelar a referida crise mundial.
No rastro dessa crise de saúde pública e econômica, ainda
temos a crise política desencadeada pelas grandes potências, evidenciando
inclusive uma disputa pela hegemonia da liderança mundial no campo político e
da economia.
No Brasil, o comportamento do presidente Bolsonaro é
idêntico aos fascistas, dada a sua
postura criminosa diante da vida da população e da efetiva aplicação do conceito da necropolítica, que
empurra a passos largos o povo para o matadouro.
É incompatível com a civilidade humana a permanência deste
abjeto presidente à frente dos rumos políticos do nosso país.
Defendemos a vida como um primado existencial e não aceitamos
quem ouse pensar de outra forma.
Contra a política de morte, defendemos e cuidamos da vida planetária.
Aldo Santos –Ex-vereador em SBcampo, Coordenador da Subsede da
apeoesp, militante das entidades de filosofia (Aproffesp e Aproffib), ativista
social e do Psol.Secretário Geral da Corrente Política-Enfrente!
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