"O coronavírus - invisível a olho nu - está atingindo
indiscriminadamente pessoas íntegras e pessoas frágeis. A economia também está
sob ataque. Os defensores do racismo devem se confrontar com um mal que os
lembra que a cor da pele não faz parte de uma hierarquia social. Quanto aos
políticos, eles não sabem como se comportar diante de um perigo invisível que
está se espalhando alegremente, como se o homem que maltratou tanto o planeta
fosse invencível. Discordo do padre Paneloux, mas é claro que de tempos em
tempos a natureza e o absurdo se unem para se vingar do homem, reduzindo-o a
pouco, um corpo cujos pulmões são devorados por dentro até a morte por
asfixia".
A opinião é do escritor franco-marroquino Tahar Ben Jelloun,
em artigo publicado por La Stampa, 08-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Bernard Pivot publicou um tweet no qual destacava que "o
coronavírus é anticapitalista (queda da bolsa de valores), ama ouro (+ 8%), é
ecologista (menos aviões no céu), é misantrópico (odeia pessoas que falam entre
si), é puritano (impede as pessoas que se tocarem)". O humorismo é
necessário quando o medo exagera e se espalha de forma explosiva. Certamente, o
vírus está conturbando a ordem mundial e está revelando o aspecto dramático da
globalização.
O mundo sempre conheceu epidemias com consequências muito
mais trágicas do que aquelas que conhecemos hoje. A peste matou milhões de
pessoas. A gripe espanhola que se espalhou de 1918 a 1919 matou 50 milhões de
pessoas em todo o mundo. O coronavírus, é ruim, mas não tem nada a ver com
outras pandemias, mata 2% dos infectados. Isso não impediu a disseminação de um
medo generalizado entre todas as populações.
Não poupa nenhum país. Não está claro como e por que a Itália
possa ter sido atingida tão duramente em poucos dias. Turismo? Descuido? Um
jornalista italiano, correspondente em Paris, sugeriu a hipótese de que este
país tem a população mais idosa da Europa, sabendo que o coronavírus ataca
principalmente os idosos. Essa explicação não é convincente. Se a Itália está
nesse estado deplorável, parece mais um acaso.
Certamente, a maioria dos estados africanos não recebeu a
visita inoportuna desse vírus, mas não é uma razão para baixar a guarda e não
se preparar para o caso de decidir se refestelar ao sol.
Curiosamente, os franceses correram às livrarias para comprar
o romance de Albert Camus, A Peste, escrito em 1947. A literatura continua
sendo levada a sério. Como esse romance esclarecerá os leitores que são
altamente informados, mas não tranquilizados?
Primeiro, o bacilo da peste é diferente do coronavírus,
nascido dos animais silvestres comidos pelos chineses. Eu nunca esquecerei a
primeira vez que li esse livro. Chocado, procurei imediatamente a
"peste" do mundo em que vivia naquela época: aconteceu em Oran em
1940. Milhares de ratos morrem nessa cidade. Eles carregam o bacilo da peste,
uma doença incurável naqueles dias. E eis que os habitantes começam a morrer,
em grandes quantidades. O Dr. Rieux (o alter ego do autor) luta o melhor que
pode contra essa tragédia. Ele a atribui ao absurdo da vida. A doença vem e,
assim como chegou, desaparece, deixando uma mensagem aos humanos para
lembrá-los de que o homem é portador de algo que se assemelha a esse bacilo, o
mal, que "nunca será completamente eliminado".
Para Camus, a peste da época era o nazismo (que, portanto,
chamaremos de "peste morena"). A resistência contra esse mal absoluto
não é total. Existem colaboracionistas, homens cínicos e oportunistas, como
Cottard, que se aproveita da situação para organizar o mercado negro, há o
padre, padre Paneloux, que, como vemos hoje, pensa que essa epidemia seja um
"castigo divino", um castigo enviado por Deus para atacar aqueles que
se desviam do seu caminho.
A "conspiração" tornou-se a explicação sistemática
do que está acontecendo no mundo. Ouvi dizer que foram "os serviços
secretos dos EUA" que enviaram esse vírus para infectar a China e
paralisar sua economia. Absurdo! Alguns dias depois, descobrimos que também os
estadunidenses foram infectados. Enquanto isso, Trump diz na televisão que
"a América destruirá esse vírus". Não destruiu nada.
O romance de Albert Camus permanece contemporâneo, desde que
seja lido como uma metáfora múltipla sobre a precariedade da condição humana. A
agonia e depois a morte de uma criança (filho do juiz Othon), atingido pelo
bacilo da peste, faz Camus dizer, ou mais precisamente o doutor Rieux:
“Recusarei até à morte amar essa criação onde as crianças são torturadas”.
Hoje, as imagens de crianças atingidas na província síria de Iblid por bombas
sírias e russas chegam até nós todas as noites em nossas telas e ficamos
chocados tanto quanto o doutor Rieux fica diante dessa tragédia.
O coronavírus - invisível a olho nu - está atingindo
indiscriminadamente pessoas íntegras e pessoas frágeis. A economia também está
sob ataque. Os defensores do racismo devem se confrontar com um mal que os
lembra que a cor da pele não faz parte de uma hierarquia social. Quanto aos
políticos, eles não sabem como se comportar diante de um perigo invisível que está
se espalhando alegremente, como se o homem que maltratou tanto o planeta fosse
invencível. Discordo do padre Paneloux, mas é claro que de tempos em tempos a
natureza e o absurdo se unem para se vingar do homem, reduzindo-o a pouco, um
corpo cujos pulmões são devorados por dentro até a morte por asfixia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário