Quando o ministro da deseducação, Abraham Weintraub, disse que "odeia" a expressão "povos indígenas", fiquei estarrecido diante de tamanha incapacidade e limitação intelectual deste energúmeno.
Fiquei pensando e acabei por reler mais uma vez um livro que gosto muito, pelo conteúdo e pelo autor do mesmo que é: Depois de 500 anos QUE BRASIL QUEREMOS?, do grande teólogo e filósofo brasileiro, Leonardo Boff, publicado pela Editora Vozes, no ano 2000, justamente 500 anos depois da invasão do Brasil pelos portugueses, em 1500.
Um livro muito didático que nas suas 127 páginas apresenta, de forma cativante, inúmeras reflexões que estão na ordem do dia.
Na introdução, o autor traça, em rápidas palavras, o objetivo do livro: “A celebração dos 500 anos de Brasil, visão imposta pelos que nos colonizaram e assumida pela oficialidade pública, propicia balanços de distinta natureza, dentre as quais sobressaem os de natureza histórica. O nosso ensaio, tomando em conta a perspectiva do passado, se concentra, fundamentalmente, na visão de futuro”, e destaca a ideia de que “O presente texto, escrito na perspectiva de uma anticelebração dos quinhentos anos, procura reforçar os companheiros e companheiras de sonho, de luta e de caminhada” (páginas 11/12).
O Manifesto da Comissão Indígena 500 anos (1999) afirma que “Os conquistadores chegaram com fome de ouro e sangue, empunhando em uma das suas mãos armas e na outra a cruz, para abençoar e recomendar as almas de nossos antepassados, o que daria lugar ao desenvolvimento, ao cristianismo, à civilização e à exploração das riquezas naturais” (página 16).
Leonardo Boff denuncia toda forma de dominação, matança e destruição da natureza, nada tendo a comemorar nestes 500 anos.
O que mais me chamou atenção foi a grande sacada ao propor a reflexão sobre o Brasil em 1500, visto a partir da praia, das caravelas, ou seja, a invasão pelos portugueses, dito descobrimento, um novo mercado a ser explorado e os obstáculos destruídos, e o Brasil visto a partir do Brasil, a invenção.
Eu acrescentaria uma reflexão e balanço a partir dos três elementos apresentados pelo autor.
Então, você imagina num determinado dia, a população originária tranquila na praia, de repente avista as caravelas se aproximando e delas descendo seres estr
anhos ao convívio dos moradores, um verdadeiro espanto e a certeza que algo de pior estaria por acontecer.
Para o autor, “a chegada dos portugueses significou uma invasão. Eles ocuparam as terras, submeteram os indígenas e construíram não uma nação autônoma, mas um entreposto comercial e depois uma colônia para enriquecer a metrópoles”. A invasão foi uma verdadeira catástrofe, escravizando e infectando a população nativa, beirando a dizimação em escala crescente da população indígena.
Boff define que o dito descobrimento “equivaleu a um encobrimento e a um apagamento do outro, da história dos povos originários do Brasil e da África” (página 15).
Alguns autores afirmam que em 1500 existiam, no que hoje denominamos Brasil, cerca de 5 milhões de nativos e hoje temos em torno de 800 mil, portanto, além da escravidão e destruição ideológica, deflagraram uma guerra e apagamento e morte de centenas de troncos linguísticos.
Na perspectiva de Boff, o nosso país é um país de contrastes e de grandes injustiças sociais. Ou seja, mesmo considerado uma das sete economias mundiais, no tocante à distribuição e renda, o mesmo se compara com países como a Guatemala, Honduras ou Serra Leoa. “Segundo relatório do Banco Mundial, o Brasil é o país com maior concentração de renda do mundo. Os 10% mais ricos têm quase a metade da renda (48%) e os 20% mais pobres detêm apenas 2%. O 1% dos mais ricos é mais aquinhoado, proporcionalmente, que o 1% mais rico dos USA e da Inglaterra. Esses índices se deterioram nos anos 90 com a crise da economia brasileira, articulada com a crise do sistema financeiro mundial” (página 20).
O autor aprofunda o debate e o conceito de invasão ao citar o teólogo José Comblim, que afirma que o Brasil foi vítima de quatro invasões, inviabilizando na prática a criação de um projeto nacional com a devida autonomia e protagonismo do nosso povo.
A primeira invasão aconteceu no século XVI, cuja história de subordinação e matança generalizada aconteceu com os nativos no denominado período da colonização.
A segunda invasão se deu no século XIX. “Milhares de emigrantes europeus (italianos, alemães, espanhóis, poloneses, suíços e outros), sobrantes do processo de industrialização de seus países de origem, para cá foram extrojetados, aliviando a pressão revolucionária que pesava sobre as classes industriais exploradoras. Foram vistos pelos índios, negros e pobres que aqui já estavam como os novos invasores” (página 32).
A terceira invasão foi por volta dos anos 30 do século XX, vindo a se consolidar no período da ditadura militar. Tentou-se neste período de cerca de 50 anos (1930-1980), “quando criou-se um dinâmico mercado interno, a base mais sólida do desenvolvimento sustentado brasileiro” (página 33).
A quarta invasão ocorre em plena globalização e consolidação do neoliberalismo nos anos 70. “Tornamo-nos o quinto maior hospedeiro de empresas multinacionais do mundo, fazendo com que 35% de nossa indústria seja construída por filiais de empresas estrangeiras. Fomos invadidos pela racionalidade da globalização econômica e pela política do neoliberalismo, chamada de modernização, elaborada nos interesses da nova fase de acumulação do capital agora a nível mundial, pela política gerenciada pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelos megaconglomerados e pelo grupo dos 7 países mais ricos do mundo” (página 34).
As categorias apresentadas pelo autor sedimentam importante arcabouço de crítica desde o período colonial até a nossa contemporaneidade.
“Foi a política colonial que lançou as bases estruturais da exclusão no Brasil como foram mostradas classicamente por Sérgio Buarque de Holanda com o seu A visão do paraíso, por Caio Prado Jr. com seu História da formação econômica do Brasil, por Simon Schwartzman com seu Bases do autoritarismo brasileiro e por Darcy ribeiro com o seu O povo brasileiro” (página 40).
O autor cita ainda a grande filósofa brasileira, Marilena Chauí, ”A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, sociedade violenta, possui uma economia predatória de recursos humanos naturais, convivendo com naturalidade com a injustiça, a desigualdade, a ausência de liberdade e com os espantosos índices de várias formas institucionalizadas-formais e informais - de extermínio físico e psíquico e de exclusão social política e cultural”, em “500 anos Cultura e política no Brasil”, na Revista Crítica de Ciências sociais, 38, 1993, 51-52, página 40.
São inúmeras citações que ajudam compreender o comportamento individual de extensão coletiva naquele espaço onde o dito ministro proferiu sua tese que não é nova na história dos dominantes e assassinos do nosso povo.
Ao citar o Manifesto Antropofágico de 1928, Boff reconhece que” O estomago brasileiro digere todas as influências externas, gestando uma cultura singular e bem nossa. A referência não é o europeu nas pessoas emblemáticas do capitão-mor Cabral e do cronista Caminha, mas os tupinambás que numa antropofagia ritual deglutiram nosso primeiro bispo Sardinha” (página 116).
A simbologia pertinente e contextualizada na permanente capacidade de resistência do nossos povos indígenas persiste e avança no processo de resistência.
Portanto, a fala do ministro, um ser abjeto e de profunda incompetência intelectual, sequer conhece a legislação brasileira e o que a constituição de 1988 expressa sobre esta temática. Assim como outras importantes publicações a saber: "A Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas”, de 2007, é um exemplo disso. Como atesta a Constituição Federal, as sociedades indígenas se enquadram perfeitamente na primeira definição que o dicionário Houaiss dá do que é 'povo', a saber: “Conjunto de pessoas que vivem em sociedade, compartilham a mesma língua, possuem os mesmos hábitos, tradições, e estão sujeitas às mesmas leis".
De acordo com a antropóloga, "os povos indígenas no Brasil são também parte do povo brasileiro, pois nada impede que se seja membro de mais de um povo. O Brasil tem portanto o privilégio, como certa vez salientou [o líder sul-africano Nelson] Mandela, de contar com mais de 300 povos em seu território".
Eloy Terena, assessor jurídico da APIB, disse que declarações como a de Weintraub traduzem "um discurso dito nacionalista que é uma conduta extremamente autoritária e tende a tornar invisíveis as realidades étnicas que existem no Brasil".
O advogado lembrou que a Constituição de 1988 já reconheceu "a pluralidade étnica do país". Antes da Carta, disse Terena, "a ordem era integrar e transformar todos em um único povo, em um processo de branqueamento, e a Constituição vem e dá um outro comando, o comando de respeitar essa diversidade de povos".
"Nós, enquanto movimento indígena, usamos muito essa expressão justamente para retratar a diversidade étnica que existe no país. Nós temos 305 povos falantes de 274 línguas e ainda o registro de 114 grupos de povos isolados. Ou seja, é uma diversidade inigualável que existe no Brasil", disse Terena (https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente).
Milhares de anos os povos nativos vêm resistindo e, seguramente, vão continuar a despeito dos ditadores e milicos de plantão. Poderíamos afirmar que a figura caricata do ministro da educação, além de desastrosa atuação junto a esta pasta, se traduz num ser acuado, talvez pela própria simbologia dos tupinambás, sai fugido do país e volta ao ventre dos dominantes e malfeitores que é o imperialismo americano.
Boff conclui este livro fazendo importante registro de profunda identidade com o cantador: “Só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra/ a marca de sangue de seus mortos/e a certeza de luta de seus vivos” (página 144).
A letra da música de Vital Faria ainda expressa: Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro / Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro / Roubou seu lugar.
Pela beleza da expressão cultural, concluo estas observações e me rendo ao inteiro teor da música para uma total e profunda reflexão.
Saga da Amazônia
“Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
No fundo d'água as Iaras, caboclo lendas e mágoas
E os rios puxando as águas
Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores
Os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores
Sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir
Era: Fauna, flora, frutos e flores
Toda mata tem caipora para a mata vigiar
Veio caipora de fora para a mata definhar
E trouxe dragão-de-ferro, prá comer muita madeira
E trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira
Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar
Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar
Se a floresta meu amigo, tivesse pé prá andar
Eu garanto, meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá
O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar
E o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar?
Depois tem o passarinho, tem o ninho, tem o ar
Igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar
Mas o dragão continua a floresta devorar
E quem habita essa mata, prá onde vai se mudar???
Corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá
Tartaruga: Pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiura
No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé de Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão
Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar
Foi então que um violeiro chegando na região
Ficou tão penalizado que escreveu essa canção
E talvez, desesperado com tanta devastação
Pegou a primeira estrada, sem rumo, sem direção
Com os olhos cheios de água, sumiu levando essa mágoa
Dentro do seu coração
Aqui termina essa história para gente de valor
Prá gente que tem memória, muita crença, muito amor
Prá defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta
Era uma vez uma floresta na Linha do Equador”
(Composição: Vital Farias)
Lutar Resistir e Vencer é Preciso!
Aldo Santos - Ex-vereador/sbc, militante sindical, popular e presidente do Psol SBcampo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário