Vale a pena a leitura, analise
e reflexão do livro “A cruel pedagogia do Vírus”, de Boaventura de Souza
Santos, uma publicação de EDIÇÕES ALMEDINAS, A.S, que de forma sintética e
profunda acrescenta importantes dados e significativa elaboração neste momento
de pandemia e quarentena.
O livro foi
publicado em plena pandemia – abril/2020 - onde o autor discorre em cinco
capítulos as seguintes temáticas:
No Capítulo 1: Vírus:
tudo o que é sólido se desfaz no ar;
No Capítulo 2: A
trágica transparência do vírus;
No Capítulo 3: A
sul da quarentena;
No Capítulo 4: A intensa
pedagogia do vírus: as primeiras lições;
E no Capítulo 5:
O futuro pode começar hoje.
Boaventura fala
da imposição do neoliberalismo a partir da década de 80, caracterizando a crise
capitalista, mas destaca o aprofundamento da crise da pandemia no contexto das
grandes crises. Ele afirma que diante das contradições existentes no âmbito do
crescimento e desenvolvimento econômico da sociedade contemporânea, a pandemia
estabelece a necessidade de outras alternativas, uma vez que “A ideia
conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo
hipercapitalismo em que vivemos cai por terra.”
Para Boaventura, a pandemia que atinge a população
mundial, levando ao trágico estranhamento que se caracteriza pelo inevitável
isolamento, expressa efetivas contradições em nossa sociedade. Faz referência
aos aspectos relativos ao meio ambiente, a devastadora crise econômica e,
apesar de reconhecer méritos e a liderança da China, admite que o mesmo não é
um pais democrático.
O autor fala dos primitivos hábitos alimentares da
China, da temeridade mundial da mesma se tornar a primeira economia mundial,
mas registra que a origem do vírus não está ainda devidamente esclarecida se de
fato foi na China ou não que tudo teve início.
“Do que sabemos com certeza é que, muito
para lá do coronavírus, há uma guerra comercial entre a China e os EUA, uma
guerra sem quartel que, como tudo leva a crer, terá de terminar com um vencedor
e um vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente neutralizar a liderança da
China em quatro áreas: o fabrico de telemóveis, as telecomunicações de quinta
geração (a inteligência artificial), os automóveis eléctricos e as energias
renováveis.”
Boaventura vai afirmar que a pandemia é uma alegoria, e
a partir da análise filosófica vai estabelecer simbologias e vai recorrer às
categorias de cunho teológico para esclarecer o momento que o mundo está
atravessando.
“O invisível todo-poderoso tanto pode ser o
infinitamente grande (o deus das religiões do livro) como o infinitamente
pequeno (o vírus). Em tempos recentes, emergiu um outro ser invisível
todo-poderoso, nem grande nem pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o
vírus, é insidioso e imprevisível nas suas mutações, e, tal como Deus
(Santíssima Trindade, encarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural, mas
é singular. Ao contrário de Deus, os mercados são omnipresentes neste mundo e
não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os
poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos
e a totalidade da vida não humana). Apesar de omnipresentes, todos estes seres
invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o vírus, nos corpos; deus,
nos templos; os mercados, nas bolsas de valores.
Fora desses espaços, o ser
humano é um ente sem-abrigo transcendental. Sujeitos a tantos seres
imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano e toda a vida não-humana de que
depende não podem deixar de ser iminentemente frágeis. Se todos estes seres
invisíveis continuarem ativos, a vida humana será em breve (se o não é já) uma
espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do
fim.”
Neste capítulo, o autor faz inúmeras constatações de
cunho teológico, sociológico e filosófico, concluindo com o emergir do novo
intelectual da retaguarda, finalizando ainda que “De outro modo, os cidadãos
estarão indefesos perante os únicos que sabem falar a sua linguagem e entender
as suas inquietações. Em muitos países, esses são os pastores evangélicos
conservadores ou os imãs do islamismo radical, apologistas da dominação
capitalista, colonialista e patriarcal.”
No capítulo terceiro, ele vai denominar de “A sul da
quarentena”, uma categoria sociológica que tem usado em inúmeros debates no
meio acadêmico e neste particular, ele sistematiza com a seguinte narrativa:
“Na minha concepção, o Sul não designa um espaço geográfico. Designa um
espaço-tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano
injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela
discriminação sexual. Proponho-me analisar a quarentena a partir da perspectiva
daqueles e daquelas que mais têm sofrido com estas formas de dominação e
imaginar, também da sua perspectiva, as mudanças sociais que se impõem depois
de terminar a quarentena. São muitos esses colectivos sociais.”
Dentre esses coletivos, ela vai destacar vários, e
confere às mulheres um sofrimento interminável, onde as mesmas muitas vezes são
sacrificadas pelo papel social que desenvolvem, chega a mencionar que as
mulheres são consideradas «as cuidadoras do mundo». Enumera várias profissões
em que as mulheres representam a extensão maternal, como a enfermagem,
educação, assistência social, além de se confrontarem com a permanente
violência no âmbito dos lares, e com esta crise, o mesmo chega mencionar o
aumento do número de divórcio na China e o aumento da violência nos espaços
domésticos, citando “O jornal francês
Le Fígaro noticiava em 26 de Março, com base em informações do Ministério do
Interior, que as violências conjugais tinham aumentado 36% em Paris na semana
anterior.”
Em relação aos trabalhadores da economia informal,
precarizados e os considerados autônomos, ele faz uma triste constatação a
partir da realidade da Índia, onde aproximadamente 70% vivem da economia
informal e na América Latina, em torno de 50%, sobrevivem da informalidade,
além de outros países citados pelo autor.
Para Boaventura, o conflito humano está posto, uma vez
que as medidas apresentadas pelos órgãos internacionais colocam o dilema do
viver, e considerando que o poder público não dá o devido respaldo através de
renda permanente via Estado, estes conflitos recaem historicamente sobre os ombros
dos empobrecidos do capitalismo.
Neste sentido, ele destaca o seguinte dilema
humano: “O que significa a quarentena para trabalhadores que ganham dia-a-dia
para viver dia-a-dia? Arriscarão desobedecer à quarentena para dar de comer à
sua família? Como resolverão o conflito entre o dever de alimentar a família e
o dever de proteger as suas vidas e a vida desta? Morrer de vírus ou morrer de
fome, eis a opção.”
Ainda nos grupos sociais mencionados, ela vai incluir
os Trabalhadores da rua, precarizados também, pois sua subsistência está
relacionada diretamente a partir da condição de vendedores ambulantes.
“O impedimento de trabalhar para os que vendem nos
mercados informais das grandes urbes significa que potencialmente milhões de
pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem
doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão.”
Outros seguimentos que foram citados são “Os sem-abrigo
ou populações de rua.” Um seguimento muito vulnerável e abandonado ao relento,
nas piores condições de vida. Para o autor, os moradores nas periferias pobres
das cidades, também são vítimas do abandono social e neste momento de pandemia,
são igualmente vítimas da concentração de renda, em resumo, “habitam na cidade
sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso
às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade.”
O autor menciona os internados em campos para
refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente.
Embora esta população já sofra restrição de locomoção, o risco do vírus atingir
esta população é ainda mais trágico e algo precisa ser feito urgentemente. Inclui
no rol de seguimentos vulneráveis, os deficientes, que “Têm sido vítimas de
outra forma de dominação, além do capitalismo, do colonialismo e do
patriarcado: o capacitismo.” , levando-os a uma determinada forma de reclusão
permanente.
Finalmente, neste capítulo o autor vai ainda incluir os
idosos, que segundo o mesmo “a vulnerabilidade não é indiscriminada. Este
grupo, particularmente numeroso no Norte global, é em geral, um dos grupos mais
vulneráveis, mas a vulnerabilidade não é indiscriminada.”
Faz menção aos presos e as pessoas com problemas
mentais. Concluindo que:
“O elenco seleccionado mostra duas coisas. Por um
lado, ao contrário do que é veiculado pelos media e pelas organizações
internacionais, a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a
injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas
provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do
pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele.”
No quarto capítulo, “A intensa pedagogia do vírus: as
primeiras lições”, o autor vai destacar a dimensão e das consequências da crise
da pandemia, sem que se discuta em profundidade a causa da mesma.
Faz referência ao caráter predatório do capitalismo em
relação ao meio ambiente, “Como noticia o The Guardian de 5 de março, segundo a
Organização Mundial de Saúde a poluição atmosférica, que é apenas uma das
dimensões da crise ecológica, mata anualmente 7 milhões de pessoas. Segundo a
Organização Mundial de Meteorologia, o gelo da Antártida está a derreter seis
vezes mais rapidamente do que há quatro décadas, e o gelo da Groenlândia,
quatro vezes mais rapidamente do que se previa. Segundo a ONU, temos dez anos
para evitar a subida de 1,5 graus de temperatura global em relação à época pré-industrial,
e em qualquer caso vamos sofrer.”
O ataque a natureza é absurdo uma vez que o mercado
consumista transforma tudo em mercadoria e trata a natureza como fonte
inesgotável, todavia, “O planeta tem de se defender para garantir a sua vida. A
vida humana é uma ínfima parte (0,01%) da vida planetária a defender.”
Em relação a causa das mazelas sociais, dos conflitos e
pandemias no sistema capitalista o mesmo vai afirmar que “Enquanto modelo
social, o capitalismo não tem futuro.”
“Em particular, a sua versão actualmente vigente – o
neoliberalismo combinado com o domínio do capital financeiro – está social e
politicamente desacreditada em face da tragédia a que conduziu a sociedade
global e cujas consequências são mais evidentes do que nunca neste momento de
crise humanitária global.”
De maneira sucinta, o mesmo vai concluir o capítulo com
uma efetiva constatação que antecipadamente nos coloca em permanente estado de
preocupação: “Estou certo de que nos próximos tempos esta pandemia nos dará
mais lições e de que o fará sempre de forma cruel. Se seremos capazes de
aprender é por agora uma questão em aberto.”
Ao cabo desta pandemia, certamente outras virão e mais
uma vez uma parte da sociedade ficará na lógica nagacionista ou dentro dos
limites da postura curativa da medicina (neste caso sem medicamento efetivo ou
vacinas), enquanto que o correto seria uma postura preventiva que deveria se
antecipar à essas cíclicas pandemias, precisando para isso, efetivos
investimentos ao atendimento público de saúde.
No quinto capítulo denominado “o futuro pode começar
hoje”, Boaventura vai sugerir que a pandemia e a quarentena precisam revelar
outras alternativas, viabilizando novos modos de vida em função do bem comum.
“Esta situação torna-se propícia a que se pense em alternativas ao modo de
viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século
XXI.”
Na busca da superação do drama provocado pela pandemia,
muitos vão sonhar com novas possibilidades e alternativas, mas aos poucos
“Regressarão sofregamente às ruas, ansiosos por voltar a circular livremente.
Irão aos jardins, aos restaurantes, aos centros comerciais, visitarão parentes
e amigos, regressarão às rotinas que, por mais pesadas e monótonas que tenham
sido, parecerão agora leves e sedutoras.”
As dificuldades para o retorno à normalidade não serão fáceis
em todos os aspectos, do ponto de vista sentimental, econômico, na educação, na
saúde, meio ambiente, etc. “Haverá vontade de pensar em alternativas quando a
alternativa que se busca é a normalidade que se tinha antes da quarentena”?
Pensar-se-á que esta normalidade foi a que conduziu à pandemia e conduzirá a
outras no futuro?”.
O autor reconhece que voltar à normalidade não será
fácil e adverte sobre o que possivelmente vai acontecer: “Muito provavelmente,
quando terminar a quarentena, os protestos e os saques voltarão, até porque a
pobreza e a extrema pobreza vão aumentar. Tal como anteriormente, os governos
vão recorrer à repressão até onde for possível, e em qualquer caso procurarão
que os cidadãos baixem ainda mais as expectativas e se habituem ao novo
normal.”
Boaventura conclui o quinto capitulo apontando novos
paradigmas caracterizando o papel dominante da sociedade capitalista e sugere
uma nova retomada:
“A nova articulação pressupõe uma viragem
epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas,
económicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no
planeta. Essa viragem tem múltiplas implicações. A primeira consiste em criar
um novo senso comum, a ideia simples e evidente de que sobretudo nos últimos
quarenta anos vivemos em quarentena, na quarentena política, cultural e
ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e a das discriminações
raciais e sexuais sem as quais ele não pode subsistir. A quarentena provocada
pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena. Superaremos a
quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como a
nossa casa comum e a Natureza como a nossa mãe originária a quem devemos amor e
respeito. Ela não nos pertence. Nós é que lhe pertencemos. Quando superarmos
esta quarentena, estaremos mais livres das quarentenas provocadas por
pandemias.”
Neste livro nos deparamos com uma breve e profunda analise
em torno desta intrigante pandemia, que de acordo com o próprio autor, “As epidemias de que o novo coronavírus é a
mais recente manifestação só se transformam em problemas globais graves quando
as populações dos países mais ricos do Norte global são atingidas. Foi isso que
sucedeu com a epidemia da SIDA/AIDS. Em 2016, a malária matou 405 mil pessoas,
a esmagadora maioria em África, e isso não foi notícia. Os exemplos podiam
multiplicar-se. Por outro lado, os corpos racializados e sexualizados são sempre
os mais vulneráveis perante um surto pandémico. Os seus corpos estão à partida
mais vulnerabilizados pelas condições de vida que lhes são impostas socialmente
pela discriminação racial ou sexual a que são sujeitos.” (https://drive.google.com/file/d/12tD1AYu1hg243WkSqxTqOftZfh8q_YKq/view?fbclid=IwAR23fSbJEo73xIUOib0ECMC8wJxzwAgMN5kPrQMrY1Wqp4MAaDcB86-ECTw)
O debate sobre o inteiro teor
do livro é fundamental e com o avanço da pandemia, algumas das constatações do
autor poderão ser afirmadas ou não, mas ousadamente teve o mérito de propiciar
em tempo real as bases de uma necessária reflexão para orientar e despertar no
campo das ciências humanas a necessidade de inferir em todos os momentos da
sociedade.
Estamos em plena guerra
biológica, que ataca e mata milhões, assim como numa guerra de disputas abertas
ou silenciosas sobre a hegemonia política que vai dar a tônica nos próximos
anos neste cenário de permanente guerra ideológica, com manifestação e
enfrentamentos diretos ou através das “guerras hibridas” que tem sacudido igualmente o
mundo no contexto das sucessivas necropolíticas.
Boa leitura!
Aldo Santos – Ex-vereador em SBCampo, Membro das Diretorias da Aproffesp
e Aproffib, militante do sindicato dos professores(apeoesp) e membro do Psol.
Uma leitura que nos ajuda a compreender melhor as causas que nos levaram a esta situação de crise mundial!
ResponderExcluirMatéria muito interessante.
ResponderExcluirO olhar para o Planeta em estado de inércia é dolorido demais.