quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Professor pueril, sociedade vingativa

Professor pueril, sociedade vingativa

15/10/2012
As estatísticas da UNESCO são claras: o salário do professor brasileiro que ensina nas primeiras cinco séries da escola fundamental é o terceiro pior do mundo. No ensino médio, somos o sétimo pior do mundo. Somos uma economia potente e, no entanto, estamos cada vez mais incultos porque pagamos mal o professor e, com isso, sucatemos a nossa escola básica. Realizamos essa proeza por conta de um percurso ininterrupto, da Ditadura Militar (1964-1985) até os dias de hoje. Os salários ruins tornaram a carreira do magistério para a escola básica alguma coisa que sobra apenas para desqualificados e/ou abnegados, e então temos um ensino péssimo que, na mensuração internacional, passa pela mesma humilhação da mensuração salarial.
Os salários de um professor brasileiro, em média (incluindo aí a rede privada!) são cinco vezes menores que os dos professores da Europa, Estados Unidos e Japão.  O professor do ensino fundamental, na cidade de São Paulo, recebe em média US$ 10,6 mil por ano. Isso é 10% do salário de um professor na Suíça. O salário anual médio de um professor brasileiro é de US$ 4.818. No Uruguai e na Argentina esse número dobra: US$ 9.842 e US$ 9.857. O mais significativo é que os professores brasileiros têm renda abaixo do Produto Interno Bruto (PIB) per capita nacional. Além disso, em comparação com países desenvolvidos ou emergentes, as salas de aula brasileiras possuem muito mais alunos. A média da relação professor/aluno do Brasil, no ensino primário, é a sexta maior do mundo: 28,9. No ensino médio o número é 38,6, uma das maiores entre todos os países com economia desenvolvida e/ou emergente.
Por que isso não muda? No “Dia do Professor”, olhando as redes sociais e jornais, ocorre um fenômeno parecido que, se bem observado, nos dá alguma pista.
As mensagens de congratulações aos professores e, de certo modo, entre os professores, mostram bem a mentalidade do brasileiro quanto à profissão do magistério. A maioria das mensagens se parece muito com aquelas dos anos sessenta, que os próprios professores ensinavam as crianças a elaborar para colocar em cartões que deveriam ser entregues no Dia das Mães (ou Dia dos Pais). São mensagens que misturam religião, auto-ajuda ou frases do tipo “a situação do professor é difícil, mas somos resistentes e insistentes – Parabéns pelo nosso dia”. Não é coisa séria. São infantilidades. E de péssimo gosto!
Nossa sociedade é incapaz de sair do buraco em que se meteu após os anos sessenta, quando de reforma em reforma educacional fomos destruindo a profissão de professor e sucateando a escola pública básica e, agora, já há vinte anos, também a particular. Tudo que fizemos foi enaltecer essa infantilidade que os professores, mal ou bem, disseminaram principalmente em datas comemorativas, cívicas etc., mas também no cotidiano regular das aulas. O Brasil não trata os professores seriamente. Responde com um tipo de sarcasmo meio que inconsciente a atitude pueril da escola, simbólica e significativamente estampada nas datas cívicas. O que quero dizer com isso? Explico!
Os professores sempre amenizaram a vida do brasileiro quando contada na escola. Contaram para o brasileiro a história de um país de mentira, “sem terremoto, com um solo eternamente fértil, sem guerras e revoluções, sem grandes traumas, sem racismo, sem violência urbana, sem chacina rural e urbana dos mais pobres e mais pretos; um lugar onde todo pobre poderia sempre ter a ajuda do rico e ser alguém na vida”. Os professores contaram essa fábula para todos os alunos. Estes, uma vez vendo que a vida não era assim e que esse Brasil nunca existiu, tornando-se adultos passaram a desconsiderar a escola. Ela não podia ser levada a sério. Os professores não podiam ser levados a sério se acreditavam naquilo tudo que contavam. Como fazer pressão nos governantes para ter uma política educacional boa se a escola não é um lugar de coisa séria, verdadeira? Os professores sempre se apresentaram, principalmente após os anos sessenta, como babás meio toscas, que compravam cartolina para que cada uma recortasse um coração e entregasse para o pai que, vítima do racismo, da pobreza, do álcool e das igrejas, espancava diariamente a mãe! O aluno obedecia, mas mais ou menos pensava, em silêncio: “esse professor não é bom da cabeça, o mundo em que ele vive não existe, ele parece uma criança!”. Como escrever as bobagens doces dos professores na cartolina para entregar para pais pobres, metidos em enrascadas diárias, ou pais de classe média que nem os viam, pois estavam esgoelando em seus escritórios para tentar não deixar faltar em casa a última Barbie para seus rebentos?
Os professores universitários e os professores do ensino médio escaparam um pouco desse mundo. Ao menos durante um tempo. Mas tendo todo o magistério superior também se tornado feminino, após os anos oitenta a universidade, principalmente nas áreas de formação de professores, ganhou o ar pueril da escola fundamental. A trajetória do Curso Normal mostra bem isso: era um curso que puxava a escola para a vida adulta, mas tendo se transformado no Curso de Pedagogia de hoje, fez o inverso, tem puxado a universidade para a infantilização. Todos os estudantes de magistério de áreas científicas têm horror de fazer matérias em suas universidades nas suas respectivas faculdades ou institutos de educação. “Aquilo não é sério”, dizem. No meu tempo de graduação as matérias “da educação” eram as “perfumarias”. O clima pueril invadiu a universidade pela área educacional. Professoras com vocação materna exagerada criaram a regra de ouro dos “departamentos de educação”: “passe a mão na cabeça do estudante, principalmente se ele tiver cara de pobre” ou já for “um professor da rede”. A mesma mentalidade protetora e fantasiosa da escola básica transmutou-se no populismo barato, rasteiro e perversamente maternal da universidade, reservando para tal atitude maligna o espaço das faculdades ou institutos de educação.
A sociedade brasileira viu na escola esse cultivo da fantasia. Viu no professor não um profissional, mas um “tio” ou uma “tia”. Não um trabalhador, mas alguém que “dá aulas”. Não uma pessoa capaz, mas alguém que foi ensinar exatamente porque não conseguiu realizar ele próprio o que o ensino capacitaria. Como ser governante e subir salários “dessa gente”, que no fundo fica o dia todo “brincando com criança” ou “se divertindo com a fantasia dos jovens”? Há preconceito da sociedade nisso. Mas há também conceito. Pois, de fato, a partir dos anos sessenta fomos cada vez mais fazendo da atividade de ensino alguma coisa antes parecida com o paraíso da brincadeira sem graça do que o cultivo do lúdico necessário a todo animal inteligente.
Moldamos assim a silhueta do professor para a nossa sociedade e, desse modo, criamos as condições para que essa mesma sociedade deixasse de lado o professor e a escola. Por isso mesmo, quase todos nós louvamos a chamada “escola da vida” em detrimento do ensino formal escolar. A maioria de nós dá pouco um nenhum valor para seus professores e insiste dizer que é um autodidata. Aliás, em nenhum lugar do mundo há tanta valorização do autodidatismo como no Brasil. O brasileiro tem vergonha de dizer que não sabia e que aprendeu de fato com o outro, com o professor. Ele prefere até dizer que aprendeu “na rua”, ouvindo “o povo”. Pois ele vê seriedade nisso, mas não na escola. Ela é cor de rosa demais para ser levada a sério. Mesmo agora, quando impregnada pela violência urbana, ela não muda, continua moralista e busca de toda maneira se ausentar da vida social. Censura o palavrão, mas não censura mais a palavra errada saída do português ruim do aluno! A escola pode ser pintada de vermelho de sangue, mas vai continuar pedindo a cartolina para fazer o coração para o Dia das Mães, e vai continuar dizendo que Tiradentes ou era um dentista maluco ou era um “idealista” e que, enfim, “isso faz tanto tempo” que não “tem tanta importância”. A maneira de comemoração das datas cívicas diz tudo da mentalidade do professor, da escola, e o modo como ambos se caracterizaram diante da sociedade.
A pior coisa que poderia acontecer a um profissional aconteceu com o professor: ele não foi tomado como um profissional, mas como um amador. Aliás, literalmente, pois sua profissão não é ensinar, é amar. Mas amar, nesse caso, no sentido que uma garota de nove anos, nos anos cinquenta, imaginava que era o amor!
Na escola pode faltar de tudo. Só não pode faltar amor. E como toda professora cultiva isso e aplaude o governante que repete o refrão do amor, a sociedade olha para esse mundo e conclui: “são crianças, não sabem o que fazem”. E se são crianças, que continuem no faz-de-conta. São como que irmãozinhos mais velhos cuidando dos mais novos – pensa a sociedade. Assim, não se pode deixar de construir uma ponte (desmatando um lugar) para usar esse dinheiro em um mundo de gente pueril, a escola, um lugar de professores, ou seja, de crianças que brincam com crianças, que tomam conta de crianças. Seria gastar mal o dinheiro público se assim fizéssemos. Essa mentalidade é estampada nas mensagens do “Dia do Professor”, ao menos para quem sabe ler nas entrelinhas ou, às vezes, escancaradamente, nas linhas mesmo.
© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Post Scriptum. Leitor, não se espante se nos comentários a esse meu texto apareçam os que vão dizer, ainda, que “salário não é tudo”. Idiotas nunca desistem. Não se espantem, também, se surgirem os que vão achar que ataquei o curso de pedagogia ou a “área de educação”. Analfabetos que não entendem meus textos, nunca desistem. E fiquem menos aturdidos, ainda, se vierem feministas que eu chamo de “cabeça de bagre”, criticar a minha posição sobre a “feminização do magistério”. São pessoas que imaginam que estou falando contra a mulher, quando na verdade estou usando de uma tipologia sociológica, já bem estudada e caracterizada em suas consequências

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