A Delinqüência Acadêmica*
Maurício Tragtenberg
O
tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o
intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a
universidade antipovo.
A
universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise;
através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as
contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade
não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição
dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição
de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses
fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a
neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições
sociais.
No
século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de
“homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas
funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela
forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital;
nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em
detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores
da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la
numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do
sistema. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos
acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova
pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que
espécie for.
Na
instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem
importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar
reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando
o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação
rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do
conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento
produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim,
e o “campus” universitário cada vez mais parece um universo concentracionário
que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores,
e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder
através de um saber minguado, atestado por um diploma.
A
universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção
dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na
universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão
de guarda” do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de
disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo,
inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da
repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na
desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento
escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente os “escolhidos”
socialmente.
A
transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a
passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade
tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para
a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e
dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que
mobiliza o diplomado universitário.
A
universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que
o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso
se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso
catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a
crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a
função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica
pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao
programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos,
constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência
acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é
necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da
crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências
humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não
se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber,
mas sim a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado”
como único “legítimo”. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a
concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma
nos hábitos universitários.
A
universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela
ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de
produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas
na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber
inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem
ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e
professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação
de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do
saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a
entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em
relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o
candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações,
conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível
– esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde
o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da
cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a
burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de
submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos
professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a
delinqüência acadêmica?
A
“delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de
Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes
de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade,
raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da
revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”.
Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico
avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de
Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do
Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma “universidade que
mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder”. Isso levou os
estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson
fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios
universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes
“corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma
“alma”. [1]
Em
nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende
cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos
interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira
oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de
escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível
de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros
estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em
compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma
“multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A
universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se
numa “agência de poder”, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua
aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O
assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população
brasileira: o problema da terra.
A
universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram
como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que
assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral
e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada
no Pentágono.
O
problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos
professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as
finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de
“delinqüência acadêmica” ou da “traição do intelectual”. Em nome do “serviço à
comunidade”, a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio,
espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão
do Estado” em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam
secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade
da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como
aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam
na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma
universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o
senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma
multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o
fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e
seu produto.
Já
na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da
neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de
um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e
seu trabalho. Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se
de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a
política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a
qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso
universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a
quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de
Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não
confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de
“mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem
preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam
informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem
contatos comerciais.
Estritamente,
o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o
título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões
superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia
estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do
acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à
política do poder.
Diferentemente,
constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica
do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de
crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço
público” prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada
de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento
do genocídio de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de
arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste “record” de
primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela
segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento
salarial.
O
pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do
século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem
de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que
caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas
relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação,
inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um
homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores
essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por
sua existência, por sua ação.
Ao
analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o
aval da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles
revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua
capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a
transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a
consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que
definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade
do intelectual substitui a dignidade da inteligência.
Nenhum
preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.
A
delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino
onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são
esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle
burocrático de sua produção como suprema virtude, onde “administrar” aparece
como sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante os
critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios
visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em
depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.
A
alternativa é a criação de canais de participação real de professores,
estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose
burocrática da instituição.
A
autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido
de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação
participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente
nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno
sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o
diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.
A
participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima
apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados
é fator de sua moralização.
____________
* Texto apresentado
no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em
Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e
Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção
teoria e práticas sociais, vol 1)
[1]
Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação
multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do
intelectual.
[2]
Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure
of German University. Macmillan, New York, 1948
FONTE: http://www.espacoacademico.com.br/014/14mtrag1990.htm
FONTE: http://www.espacoacademico.com.br/014/14mtrag1990.htm
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