A memória e a tradição dos oprimidos
Michael Löwy
Ora se se ignora ou
se despreza o pensamento de Che, as suas ideias, os seus valores, a sua teoria
revolucionária, o seu marxismo crítico, como se pode entender a coerência da
sua vida, os motivos essenciais da sua acção, a inspiração político-moral da
sua prática, o fogo sagrado que o movia?
Guevara não chegou
ao marxismo pela experiência da própria revolução; pelo contrário, tentou muito
cedo decifrar essa revolução recorrendo a referências marxistas, e assim foi o
primeiro a captar plenamente o significado histórico-social da revolução cubana,
proclamando, em Julho de 1960, que esta "descobriu também, pelos seus
próprios métodos, os caminhos que assinalou Marx". 1 Mas muito antes, em Abril de 1959, ele já previa o rumo que ia tomar o
processo cubano, depois da queda da ditadura de Batista: trata-se, dizia o Che
numa entrevista com um jornalista chinês, de "um desenvolvimento
ininterrupto da revolução", até abolir "o sistema social
existente" e os seus "fundamentos económicos". 2
De 1959, até à sua
morte, o marxismo do Che evoluiu. Ele afasta-se cada vez mais das ilusões
iniciais acerca do método soviético de socialismo e do estilo soviético - quer
dizer, estalinista - do marxismo. Nos seus escritos percebe-se de maneira cada
vez mais explícita, sobretudo a partir de 1963, a busca de um modelo alternativo,
a tentativa de formular outra via para o socialismo, diferente dos paradigmas
oficiais do "socialismo realmente existente". O seu assassinato pelos
agentes da CIA e os seus sócios bolivianos em Outubro de 1967 vai interromper
um processo de maturação política e de desenvolvimento intelectual autónomo. A
sua obra não é um sistema fechado, um discurso acabado que tem resposta para
tudo. Sobre muitas questões - a democracia na planificação, a luta contra a
burocracia - a sua reflexão é incompleta.
O marxismo de Che
distingue-se das variantes dominantes na sua época. É um marxismo
antidogmático, ético, pluralista, humanista, revolucionário. Alguns exemplos
permitem ilustrar estas características.
Antidogmático: Marx, para o Che, não era um Papa
favorecido com o dom da infalibilidade. Nas suas "Notas para o estudo da
ideologia da Revolução cubana" (1960), ele sublinha: mesmo sendo um
gigante do pensamento, o autor de O Capital tinha cometido erros que se podem e
devem criticar. Por exemplo, em relação à América Latina, a sua interpretação
de Bolívar, ou a análise do México que ele faz com Engels "dando por
estabelecidas inclusive certas teorias das raças ou das nacionalidades
inadmissíveis hoje". 3
Mais grave que os
erros de Marx são os fenómenos de dogmatização burocrática do marxismo no
século XX: em várias ocasiões Guevara queixa-se da "escolástica que travou
o desenvolvimento da filosofia marxista" - uma evidente referência ao
estalinismo - e que inclusive impediu sistematicamente o estudo do período de
construção do socialismo. 4
Ético: A acção revolucionária é
inseparável de certos valores éticos. Um dos exemplos é o tratamento aos
prisioneiros de uma guerrilha: "Uma clemência o mais absoluta possível com
os soldados que vão combater cumprindo, o pensando cumprir, o seu dever
militar. (...) Os sobreviventes devem ser deixados em liberdade. Os feridos
devem ser cuidados com todos os recursos possíveis"5. Um incidente da batalha de Santa Clara ilustra ocomportamento do Che:
a um companheiro que propõe que se execute um tenente do exército feito
prisioneiro, o ocmandante Guevara responde: "Pensas que somos como
eles?"6
A construção do
socialismo é inseparável de certos valores éticos, contrariamente ao que
defendem as concepções economicistas - de Estaline a Charles Bettelheim - que
só consideram "o desenvolvimento das forças produtivas". Na famosa
entrevista com o jornalista Jean Daniel (Julho de 1963) o Che dizia, no que já
era uma crítica implícita ao "socialismo real": "O socialismo
económico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas
ao mesmo tempo contra a alienação. (...) Se o comunismo passa por alto os
factos da consciência, poderá ser um método de repartição, mas já não é uma
moral revolucionária".7
Pluralista: Mesmo que o Che nunca tenha chegado
a formular uma concepção acabada da democracia socialista, defendia a liberdade
de discussão no campo revolucionário e o respeito à pluralidade de opiniões. O
exemplo mais taxativo é a sua resposta - num relatório de 1964 aos seus
companheiros do Ministério da Indústria - à crítica de "trotskismo"
que lhe lançaram os soviéticos: "A este respeito, creio que ou temos a
capacidade de destruir com argumentos a opinião contrária, ou devemos deixá-la
expressar-se... Não é possível destruir uma opinião com a força, porque isso
bloqueia todo o desenvolvimento livre da inteligência. Também do pensamento de
Trotsky podemos tomar uma série de coisas, mesmo se, como penso, se tenha
enganado nos seus conceitos fundamentais, e se a sua acção ulterior tenha sido
errada..."8
Revolucionário: Durante anos e décadas, o marxismo
serviu na América Latina de justificação a uma política reformista de
subordinação do movimento operário a uma aliança com a suposta "burguesia
nacional", com vista a uma suposta "revolução democrática",
nacional e antifeudal". Na sua "Mensagem à Tricontinental"
(1966) Guevara cortou o nó górdio que atava os explorados de mãos e pés:
"Não há mais mudanças a fazer: ou revolução socialista ou caricatura de
revolução".9
Humanista: A leitura de Max por Che é
totalmente diferente da vulgata estruturalista, "anti-humanista
teórica", althusseriana, que tanto se difundiu na América Latina nos anos
60 e 70. A crítica do capitalismo - sociedade na qual "o homem é o lobo do
homem" - a reflexão sobre a transição para o socialismo, a utopia
comunista de um homem novo: todos os temas centrais da obra marxista do Che têm
o seu fundamento no humanismo revolucionário. Na sua conversa com os jovens
comunistas em 1962, Guevara insistiu que o revolucionário deve "colocar
sempre os grandes problemas da humanidade como problemas próprios", quer
dizer, "sentir-se angustiado quando se assassina um homem em qualquer
canto do mundo e para sentir-se entusiasmado quando nalgum canto doo mundo se
levanta uma nova bandeira de liberdade". Mais além dos erros tácticos ou
mesmo estratégicos, o compromisso pessoal do Che com a revolução no Congo e na
Bolívia, com o risco da sua vida, é a tradução nos factos destas palavras.
O mundo - e a
América Latina - mudaram muitíssimo nestes últimos 30 anos. Não se trata de
voltar atrás e procurar nos escritos de Che a resposta a todos os nossos
problemas actuais. Mas a verdade é que os povos continuam, hoje como ontem, sob
o domínio do imperialismo; que o capitalismo, na sua forma neoliberal, continua
a produzir os mesmos efeitos: injustiça social, opressão, desemprego, pobreza,
mercantilização dos espíritos. Pior: nunca no passado o grande capital
financeiro multinacional exerceu um poder tão esmagador sobre o conjunto do planeta.
Nunca, como agora, conseguiu o capitalismo afogar todos os sentimentos humanos
nas "águas glaciais do cálculo egoísta". Por isso precisamos, hoje
mais do que nunca, do marxismo do Che, de um marxismo antidogmático, ético,
pluralista, revolucionário, humanista.
No século XXI,
quando já estiverem esquecidos os ideólogos neoliberais que hoje ocupam a cena
política e cultural, as novas gerações lembrar-se-ão ainda do Che, do seu
combate e das suas ideias.
II
Segundo Walter
Benjamin, na sua tese Sobre o Conceito de História (1940), as forças da
rebelião dos oprimidos têm as suas raízes na memória dos vencidos, dos
ancestrais caídos na luta. A América Latina é um exemplo impressionante desta
regra: as revoltas e as insurreições populares durante o século XX e até hoje
inspiraram-se nas figuras de José Marti, Emiliano Zapata, Augusto Sandino,
Ernesto Che Guevara. Lutadores vencidos, que caíram com as armas nas mãos e se
transformaram, para sempre, em grãos de futuro semeados na terra
latino-americana, estrelas no céu da esperança popular.
Este livro de
Nestor Kohan é muito mais que uma homenagem a Ernesto Guevara: é uma importante
contribuição ao debate marxista na América Latina, a partir de uma leitura
humanista e revolucionária dos escritos do médico-guerrilheiro argentino. Não
se trata de uma obra sistemática, mas sim de uma colecção de ensaios,
conferências, entrevistas, que abordam múltiplaos aspectos do pensamento do Che
e da sua herança no movimento revolucionário latino-americano (Robi Santucho,
Miguel Enríquez). Esta diversidade, esta pluralidade de posições e de temas, é
precisamente o que faz o interesse do livro, a sua riqueza, a sua vitalidade.
Ao mesmo tempo, é
evidente a unidade, a coerência deste conjunto de trabalhos: todos têm por fio
condutor a filosofia da praxis, o marxismo humanista, a perspectiva
revolucionário-socialista de Guevara. E em vários discute-se o que é, creio,
uma das suas contribuições mais importantes: a formulação de uma via nova para
o socialismo, que não seja "decalque e cópia" (para retomar a fórmula
de Mariátegui) da experiência soviética. A sua concepção - combatida como
"utópica e perigosa" pelo partidário Estaline (e de Althusser)
Charles Bettelheim, mas sustentada por Ernest Mandel, o principal teórico e
dirigente da Quarta Internacional - acerca da contradição entre o plano e o
mercado é inseparável, como muito bem defende Néstor, do seu humanismo teórico,
do seu desejo de libertar os indivíduos da alienação e da "jaula
invisível" das leis económicas mercantis.
Analisando vários
escritos económicos do Che recentemente publicados, e dialogando com Orlando
Borrego, Néstor permite-nos conhecer melhor a evolução do seu pensamento nos
últimos anos (1964-67), o seu interesse pelas posições da Oposição de Esquerda
(Preobrajensky, Trotsky), a sua rejeição dos "Manuais" soviéticos, a
sua busca de novas soluções, a sua intuição segundo a qual a URSS ia acabar por
restaurar o capitalismo.
No título do seu
livro 10, e num dos ensaios, Néstor defende a actualidade das ideias - e do
combate - internacionalista radical do Che para o "movimento dos
movimentos" nascido em Seattle em 1999: mais além do capitalismo e do
brutal domínio imperialista, "um outro mundo é possível", baseado nos
valores da solidariedade, da igualdade e da liberdade que constituem o
socialismo.
O que dá todo o
valor singular a este livro é a sua maneira de associar o compromisso militante
com a herança revolucionária e marxista do Che, e uma reflexão teórica profunda
sobre questões como a filosofia da práxis, o conceito de alienação, o
estruturalismo, o determinismo, o pós-modernismo.
Podemos criticar
uma ou outra formulação de Néstor, ou estar em desacordo com uma ou outra
posição - por exemplo, sobre a relação entre democracia e socialismo em Cuba -
mas são livros como este que nos ajudam a implementar a tarefa que Walter
Benjamin destinava ao pensamento revolucionário: salvar a tradição dos
oprimidos do conformismo que tenta apoderar-se dela.
Paris, 6 de Abril de 2005
1"Ao Primeiro
Congresso Latino-americano de Juventudes", discurso de 28 de Julho de
1960, em Ernesto Che Guevara, Obras 1957-1967, La Habana, Casa de las Américas,
1970, vol. 2, p. 392. Citaremos adiante esta edição como Casa.
2 E.Guevara, Selected Works, Cambridge, MIT Press, 1970, p. 372.
3 Casa, vol. 2, p.416.
4 Casa, vol. 2, pp. 416, 190. Num discurso de Abril de 1962 sobre
Escalante e a sua tentativa de estalinização do partido revolucionário cubano,
Guevara sublinha a relação íntima entre afastamento das massas, burocratismo,
sectarismo e dogmatismo. Em Ernesto Guevara, Obra revolucionaria, México, Era,
1967, p.333.
5 Che Guevara, "La guerra de guerrillas", Casa, vol. 1, p. 46.
6 Citado em Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, connu aussi comme le
Che, Paris, Payot, 1997, p.299.
7 Em L'Express, 25 de Julho de 1963, p.9.
8 Che Guevara, "Il piano i gli uomini", Il Manifesto n° 7,
deciembre del 1969, p.37.
9 Casa vol. 2, p. 589. É impressionante o paralelo com a tese de José
Carlos Maraitegui em 1929: "À América do Norte, plutocrática,
imperialista, só é possível opor eficazmente uma América Latina o Ibérica,
socialista. (...) O destino destes países, dentro da ordem capitalista, é o de
simples colónias". (J.C.Mariategui, El proletariado y su organización,
México, Grijalbo, 1970, pp. 119-121)
10 Na sua primeira edição impressa, este livro apareceu com o título com o
título Ernesto Che Guevara: Otro mundo es posible. A esse título faz referência
no seu prólogo Michael Löwy. [Nota de N.K.]
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