segunda-feira, 14 de março de 2011

Questões de gênero e empoderamento da mulher em situação de violência: o trabalho como espaço de convivência e sobrevivência.




Vivilí Maria Silva Gomes

vivilee@click21.com.br


A inserção da mulher no mundo do trabalho faz parte do processo de sua emancipação. Tem propiciado conquistas históricas que vêm contribuindo para a sua participação no âmbito da civilização contemporânea, em busca da construção de um mundo onde o olhar feminino soma-se ao masculino, amplia o espectro de possibilidades de convivências rumo a um mundo melhor para todos, mais justo e mais humano.

Porém, a ampliação dos espaços de atuação da mulher tem gerado um conjunto de problemas que se incorporam aos já existentes milenarmente e que caracterizam as formas de poder manifestados nos mais diversos aspectos da vida humana e suas relações, e que englobam o nível pessoal, social e ambiental. No comportamento social, predominante nos últimos milênios, a casa e a rua se separam, feminino e masculino mantém-se com espaços de domínio e ação bem localizados. O masculino encontrou-se nos espaços sociais, públicos e mais visíveis. Já o feminino teve seu domínio restrito a espaços mais reclusos, menos visíveis e não públicos: os chamados espaços domésticos. Os acordos de gêneros ocorridos ao longo da história para manutenção desses espaços de domínio visaram evitar ou minorar os conflitos de gênero mais dramáticos e geradores de um possível esfacelamento da estrutura social básica: a família. No caminho trilhado no processo civilizatório, principalmente nos dias atuais, esses acordos mostram-se frágeis, pois os espaços de ação dos gêneros se misturam, seus limites, antes tão bem definidos, agora ficam borrados. O feminino sai de sua clausura, expande-se em direção ao social. O masculino assume um papel mais intimista, mais doméstico com todas as suas nuances.

O corpo é também o incontestável espaço onde o masculino e o feminino se manifestam. Abriga uma psique que em essência não mostra de forma clara a distinção entre os sexos, que é uma construção sócio-cultural. E, neste campo, há um espectro infinito de possibilidades de manifestações do que se entende por masculino e feminino num mesmo indivíduo. É o corpo também o lugar de encontro entre homem e mulher, onde o amor se manifesta nas suas mais diversas formas numa mistura de espaços corporais que gera uma gama de imagens e vertentes interpretativas de relações que passam pela sexualidade, ora divinizada, ora demonizada. A psique masculina e feminina é afetada pelas condições a que se submete. E, isso gera um continuum de psique que se extrapola para o social e ambiental traduzindo-se em atitudes e comportamentos sintonizados em grande parte com o padrão patriarcal vigente. As próprias mulheres têm contribuído para a manutenção desse padrão, pois são as que educam homens e outras mulheres ao assumirem o papel de mães. Enfim, tanto mulheres como homens participam da manutenção desse status quo, que não está escrito de forma clara. Aliás, o que mais se afirma é o que não se sabe. Está, sim, escrito no imaginário de todos, homens e mulheres, manifesta-se em ações, muitas vezes, inconscientes de indivíduo para indivíduo, atinge a grande massa, origina-se em tempos imemoriáveis e perdura até hoje afetando nossas ações cotidianas e o nosso futuro.

Os 50 anos de feminismo já foram contaminados por interesses ocultos e que designam um padrão de ação que diverge da maternagem, solidariedade e cooperatividade características do comportamento feminino. Organizar o lar, cozinhar, lavar, passar, etc. Onde está o tempo do encontro consigo mesma? Onde está o tempo para o encontro com outras mulheres, em grupos nos quais possa falar dos problemas que lhes afligem e que traga benefícios coletivos em vez de se manterem fragmentadas e desunidas? O poder da mulher, uma vez fragmentado, não possibilita que o reconheça, o que só ocorrerá por meio de uma auto-análise do que se passa em essência consigo e no conjunto das mulheres, propiciando seu fortalecimento, seu empoderamento.

De qualquer forma, o processo está desencadeado e agora as mulheres não conversam somente na cozinha, na porta das escolas, nos salões de beleza, na casa das vizinhas, no portão de casa ou na janela. Seus espaços de conversa se ampliaram. A expansão do universo feminino não se atém aos espaços geográficos e sociais: são espaços de consciência. Espaços externos que se alternam com os espaços internos. Expansão da consciência feminina implica na expansão da consciência masculina e, conseqüentemente, na revisão dos papéis de ambos, homens e mulheres. Mas, até que isso ocorra, os conflitos de gênero visibilizam-se, se amplificam e tornam-se insustentáveis. Acionam o desmantelamento dos padrões sociais vigentes e tendem a se eclodirem em atitudes de desespero ou de desesperança. O grito das mulheres violentadas entre quatro paredes não pode mais ser calado, pois o corpo se mostra e não esconde mais as marcas das arranhaduras, das esganaduras, dos sufocamentos, dos estrangulamentos, os hematomas, os cortes, os ferimentos à bala. Sangue e lágrimas, lágrimas de sangue. Mulheres em situação de violência clamam pelo apoio da sociedade para se libertarem de seus algozes nos quais também se incluem. Precisam ser ajudadas a se libertarem de si mesmas, pois não se reconhecem como seres humanos plenos. Ah! E são muitas que já se foram. Muitas que não se sabe quem são. Porém, hoje, muitas são ilustres conhecidas, pois surgem na mídia aos montes. Embora silenciadas, o silêncio foi rompido: são Patrícias, Mércias, Elizas, Silvânias, Juceleides, Sirleis, Anas Paulas, Camilas, Sandras, Elianes, Anas Elisas, Eloás, Danielas, Marias as mais diversas, Islaine, Aparecida, da Penha... Sim, somos todas Marias da Penha! Que acionam a justiça, que lutam para a mudança da legislação. Ao se coibir atos de violência contra a mulher, criminalizando-os, passam a não ser encarados como “normais” socialmente e culturalmente.

A superação desses conflitos de gênero está na busca de saídas que envolvam formas assertivas para seu enfrentamento. Encontrar e acionar mecanismos de contenção da violência no sentido de ajudar mulheres e homens a se reconhecerem nessa confusão é fundamental. “Às vezes, reconhecer é o bastante.” diz Carl Rogers. E para isso o diálogo é imprescindível. Buscamos um caminho possível para o que se chama liberdade. E, liberdade na sociedade de mercado, no mundo do capital, significa independência econômica, viver de seu próprio ganho sem dependência do outro. Liberdade, numa sociedade que reabilita a escravidão, é ter trabalho e salário dignos para sua sustentabilidade e de seus filhos. O trabalho torna-se, então, o principal recurso para o empoderamento da mulher na sociedade do capital. Algumas vezes, a dependência não é econômica e essa é mais difícil de ser superada, pois depende de fatores pessoais e internos próprios da dinâmica psíquica da mulher. Mas, na maioria das vezes, o fator econômico relacionado ao profissional, onde a mulher se encontra no fazer algo que goste, que lhe atraia e ao qual esteja agregado um valor econômico possibilita sua sustentabilidade, o que a fortalece. A necessidade de inserção da mulher em situação de violência no mercado de trabalho também aumenta a demanda já existente, e ainda não atendida, de vagas em creches para seus filhos e filhas pequenos. Essa mulher vive em desamparo de seu cônjuge ou companheiro com o qual não pode contar no apoio, cuidado e manutenção da prole. Sofre com a contenção social externa por parte de seus próprios familiares que discordam de suas atitudes de libertação e com eles já não pode contar.

Sendo assim, o Movimento de Mulheres em Situação de Violência em busca de Trabalho reivindica ações do poder público em diversas esferas que facilitem:

- a qualificação profissional de mulheres nessa condição em áreas onde haja oferta de vagas no mercado de trabalho;

- a absorção desse contingente de mulheres em vagas já existentes no mercado quando qualificadas para tal. Para isso, é necessário, inicialmente, que se garanta a reserva de vagas para mulheres nessa condição similar ao regime de cotas já existente para outros grupos minoritários;

- a criação de novas vagas destinadas a esse contingente feminino.

Está lançada a proposta e acredita-se que possa ecoar nas câmaras legislativas, seja por meio daqueles que já as ocupam ou aqueles que desejam ocupá-las pelo voto popular. Conta-se com o apoio dos que se solidarizam com a causa das mulheres vítimas de violência, que voltam seu olhar para aquelas que geram e cuidam de nossas crianças, que as ampara e que possibilita sua emancipação em prol de uma sociedade onde homens e mulheres não somente se olhem, mas que olhem juntos na mesma direção e superem seus conflitos em benefício de um mundo mais justo e mais humano.

Vivilí Maria Silva Gomes é Doutora em Ciências pela USP e Especialista em Arteterapia pela UNESP. Atua como professora e arteterapeuta na Região do Grande ABC. É ativista em movimentos ambientalistas, pelo direito e saúde da mulher e de cultura de paz.

Email: vivilee@click21.com.br

http://viviligomes.blogspot.com/

MOVIMENTO DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA EM BUSCA DE TRABALHO

http://twitter.com/vivammarias

http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/6539



Nenhum comentário:

Postar um comentário