quinta-feira, 10 de maio de 2018

A FARSA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO!



SOBRE A IMPORTÂNCIA DO DIA 20 DE NOVEMBRO
A escravidão na América tem origem a partir da conquista de Ceuta, entreposto marroquino, pelos portugueses em 1415. Portugal percebeu que o elemento negro era peça fundamental de uma estrutura de dominação em gestação. E, que mais tarde, seria a mola mestra do sistema colonial, o triângulo comercial: Europa, África e América, sobretudo a partir de 1513, com a introdução dos primeiros africanos, sistema consolidado a partir de 1530 com a colonização e a atividade açucareira.
Os negros eram transportados da África de maneira tão cruel que muitos preferiam se jogar ao mar. Os “tumbeiros”, navios que carregavam grande quantidade de africanos, chegavam a ter carga dez vezes superior à sua capacidade. Era um instrumento organizado para desestruturar a cultura do negro, para que depois fosse mais fácil impor a este um regime de escravidão. Dentro dos “tumbeiros” os membros de uma mesma religião, de uma mesma família ou de uma mesma tribo, eram separados. Este regime de separação contribuiu para que parte da história destes povos fosse apagada.
Ocorreram várias revoltas organizadas, sendo as dos Quilombos as mais consistentes e, entre eles, o mais estruturado foi o de Palmares. Localizado na serra da Barriga, no Estado de Alagoas, próximo ao Estado de Pernambuco, chegou a organizar 23 mil negros, um número superior às populações da maioria das cidades daquela época.
O Quilombo dos Palmares era um projeto de organização social diferente daquele da sociedade colonial organizado pelos portugueses. Porque reunia negros, índios, brancos, pobres e todos aqueles que estavam sofrendo com o sistema de dominação vigente. Essa formação social criada pelos negros e liderada por Zumbi abalou a estrutura de dominação portuguesa.
A repressão contra os palmarinos foi a maior da história brasileira. Após várias tentativas frustradas de derrotar o Quilombo, o governo português recorreu ao bandeirante paulista, Domingos Jorge Velho, experiente caçador de índios no mato, investindo uma gigantesca quantia. A derrota de Palmares ocorreu em 1695, quando Zumbi foi assassinado e sua cabeça exposta em praça pública para servir de exemplo àqueles que resistiam contra a escravidão.
Lembrarmos os mais de trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares é afirmar que a luta do líder negro é a nossa luta em defesa da reforma agrária, contra o racismo e a xenofobia e contra os exploradores neoliberais, que promovem e perpetuam o genocídio em todos os recantos do planeta.
Entendemos os feriados e as datas comemorativas como instrumentos educativos, em que a população mantém viva sua história, sua identidade cultural e sua autoestima enquanto nação. Porém, as principais datas cívicas brasileiras ainda são aquelas que promovem os personagens e eventos históricos de interesse das classes dominantes: O dia 7 de Setembro é lembrado como dia da "independência" do país. Porém, sabemos que esta independência político-administrativa significou, na verdade, uma transferência de dependência da coroa portuguesa para o Império Colonial Inglês, o que custou muito caro para o Brasil. Nos dias atuais outras potências cumprem esse papel imperialista de dominação às economias centrais e periféricas.
Para se emancipar de Portugal, a nação Brasil, recém-criada, teve que assumir as dívidas da Coroa Portuguesa com a Inglaterra, dando origem à Dívida Externa Brasileira. A "Abolição da escravatura", comemorada em 13 de Maio, atendeu na verdade aos interesses econômicos do capitalismo inglês, que impôs ao Brasil a mudança do modelo econômico colonial para o modelo capitalista, que requeria o fim do sistema de trabalho escravagista e instituição do trabalho assalariado.  
Nesta mudança, os negros passaram a ser um fardo para a elite econômica brasileira. O Governo Imperial promulgou um conjunto de leis (Ventre Livre, Sexagenário, Lei Áurea, dentre outras) para de fato livrar os latifundiários do peso de "sustentar" os escravos negros. É claro que a pressão exercida pela luta secular de libertação do povo negro, com fugas, combates e organização de quilombos contribuiu decisivamente para este processo.
Assim como fazem os Sem-terra e os Sem-teto, nos dias atuais, os quilombos desenvolveram sua luta a partir da territorialização. Ou seja, ocupavam porções de terras e lá organizavam uma comunidade com funcionamento e valores antagônicos e alternativos à sociedade colonial excludente, desigual e opressiva. Nos quilombos viviam além dos negros, os índios, caboclos e brancos pobres, constituindo um embrião de sociedade plural e democrática.
A discriminação se dá nos variados setores da sociedade, desde a falta de acesso ao mercado de trabalho (e a salários compatíveis com brancos em mesma função), à educação, bem como e, sobretudo a ausência nas instâncias de poder e decisão, quer nos setores políticos, sociais ou religiosos.
Do ponto de vista teológico, a escravidão foi justificada a partir do relato bíblico (Gênesis. 9,18-27), conforme consta do livro Racismo, Preconceito e Intolerância, de Edson Borges, Carlos Alberto Medeiros, Jaques D´Adesky, página 15, editora Atual, terceira edição. “Em decorrência da praga rogada por Noé - Maldito seja Canaã, filho de Cam -, a história registrou diversas leituras preconceituosas daquele mito bíblico, como a que relata que, desde então, a vontade divina repartiu o mundo entre os filhos de Jafé (Europeus), Sem (Semitas) e Cam (africanos) ”.
O pecado original dos negros e a maldição de Cam são temas abordados também pelo professor de literatura brasileira, Alfredo Bosi, em um brilhante trabalho intitulado Sob o signo de Cam, no qual analisa os dois mais belos poemas de Castro Alves, Vozes d´África e o Navio negreiro, concluindo que esses velhos mitos bíblicos serviram ao novo pensamento mercantil para justificar o tráfico negreiro. O mesmo livro faz referência à publicação de Edílson Marques da Silva, Negritude e Fé, em que afirma que uma teologia de caráter racista esteve na base de todo o processo de colonização do Brasil.
A história oficial, sob a ótica dos brancos-colonizadores, impregnou na sociedade brasileira, por mais de quatro séculos, a visão preconceituosa que associa o negro à escravidão, à improdutividade e à inferioridade. No entanto, o resgate histórico das experiências de resistência da raça negra e de outros segmentos da maioria oprimida é uma prática recente e que nos remete a heróis como Zumbi dos Palmares e sua luta de libertação.
O Quilombo dos Palmares foi uma ousada aventura libertária que resistiu quase 70 anos às investidas do governo colonial. Lá viveram em torno de 20 mil escravos que lutaram por sua liberdade, organizando um novo modelo de sociedade. A história do Brasil, na leitura e perspectiva do negro, aponta o marco da verdadeira Consciência Negra como sendo o Dia 20 de Novembro, data em que assassinaram Zumbi dos Palmares, no ano de 1695.
Se a exploração e o massacre marcaram e marcam até hoje a história dos negros no Brasil, também é verdade que a utopia dos quilombos alimenta a fome de liberdade e de identificação desta etnia, que ainda, apesar de discriminada e violada em seus direitos básicos e em sua dignidade, resiste com sua cultura e seu poder de resistência a toda e qualquer violência perpetrada pelos atuais senhores da Casa Grande.
Ao contrário de representar uma reparação às atrocidades e desrespeito com o povo negro, a abolição de 13 de maio de 1888 foi uma saída de mercado. A proibição do tráfico negreiro (lei Eusébio de Queiroz, de 1850) foi motivada por pressões externas de países onde o capitalismo já avançava em sua fase industrial, processo este liderado pela Inglaterra. Longe de ser um gesto humanitário da Senhora Isabel, este ato significou a mudança nas relações econômicas e no padrão de consumo.
As transformações econômicas, porém, não significaram mudanças na qualidade de vida da população negra. Da escravidão abjeta e desumana, o povo negro foi atirado no abandono, passando a perambular em busca de abrigo e alimento, muitas vezes doente e moribundo, sem amparo dos senhores de engenho e do Estado, tanto Monárquico quanto o Estado Positivista “Ordem e Progresso” Republicano.
A importação de escravos transformou-se em contrabando, elevando o preço do escravo e a sua utilização enquanto mão de obra antieconômica. Assim, paralelamente o governo monárquico brasileiro passou a incentivar a importação de trabalhadores europeus.
Desta forma, se dá a transição do trabalho escravo negro para o trabalho "livre". Por não atenderem mais as necessidades do mercado, milhões de trabalhadores negros se viram abandonados, sem direitos, sem trabalho, sem casa, sem família, destituídos de lugar social.
Como bem expressa o texto produzido pelo Fórum Nacional dos Trabalhadores Negros: "Saímos, então, das mãos dos sinhozinhos e caímos na marginalidade por falta de trabalho remunerado e casa para morar. Este é um dos motivos que neste dia 13 de maio não podemos comemorar a libertação. Pelo contrário, hoje o preconceito racial está mais vivo do que nunca”.
Com a palavra os trabalhadores negros: “Nós negros somos discriminados e marginalizados, nossas crianças são vítimas da violência. Cerca de 70% dos assassinatos de menores no Brasil na faixa de 13 a 17 anos são de negros. A maioria é nascida em favela e pertencem a famílias com uma renda inferior a um salário mínimo“ (Documento da Anistia Internacional).
As mulheres negras estão sendo esterilizadas, sem ao menos ter o direito de escolha, sendo que a maior ocorrência tem sido nas regiões Norte e Nordeste. Somos discriminados no local de trabalho. Os jornais trazem anúncio solicitando pessoas de "boa aparência" - racismo velado - para contratação. Na verdade, há diferenças salariais. Há negro que faz o mesmo tipo de trabalho de um branco e recebe salário menor - os brancos representam 57% da força de trabalho e ficam com 72% do rendimento, enquanto os negros e pardos representam 40% da força de trabalho, ficando apenas com 25% do rendimento.
Os negros são alvo de preconceito também pela polícia. Basta um negro ficar na rua à noite e não ter registro em carteira para ser considerado marginal. Pesquisa da Datafolha, realizada com 1.080 entrevistados - dois dias após a exibição do vídeo pela TV, onde policiais militares de Diadema apareceram torturando e extorquindo civis e dando o tiro que matou o mecânico Mário José Josino, parado durante a blitz na favela Naval -, mostrou que os negros são abordados com maior frequência pela polícia, recebem mais insultos e mais agressões físicas que os brancos ou qualquer outro grupo étnico. Entre os entrevistados da raça negra, quase a metade (48%) já foi revistada alguma vez. Desses, 21% já foram ofendidos verbalmente e 14% agredidos fisicamente. Enquanto entre os brancos, 34% já passaram por uma revista policial, 17% ouviram ofensas e 6% já foram agredidos, ou seja, menos da metade da incidência com negros.
Embora os órgãos governamentais tentem estabelecer o fim da escravidão a partir da assinatura da Lei Áurea, em 13 maio de 1888, entendemos que o marco de luta, resistência e referência para os escravizados é fundamentalmente a luta do Quilombo dos Palmares e o 20 de novembro de 1965, data na qual foi assassinado Zumbi dos Palmares.
Outros exemplos concretos de luta do povo negro foram: a “Revolta dos Malês”, em 25/01/1835, Salvador, Bahia, liderada, dentre outros, por Licutan; no Rio de Janeiro, em 22/11/1910, João Cândido, o Almirante Negro, comandou a luta que ficou conhecida na história como “A Revolta da Chibata”. Em 1931, foi fundada a Frente Negra Brasileira, que se transforma num partido político. Em 1944, surge o Teatro Experimental do Negro, bem como é fundado também o Teatro Popular Brasileiro, onde se destaca o poeta Solano Trindade. Posteriormente, outros personagens vão contribuir enormemente com o nosso movimento. Enfim, tantos outros, que no silêncio e anonimato resistem contra toda forma de escravidão, opressão racial e de classe.
Em 1971, o poeta Edson Carneiro dá o pontapé sobre a data de 20 de novembro, culminando com a atuação do MNU (Movimento Negro Unificado), que no dia 7 de julho de 1978 propôs o 20 de novembro como dia Nacional da Consciência negra.
No dia 20 de novembro de 1989, a Câmara Municipal de São Bernardo do Campo, por força de uma propositura do ex-vereador Aldo Santos, realizou pela primeira vez o debate oficial sobre o significado histórico da luta de Zumbi dos Palmares e a necessária contextualização na atualidade.
Neste sentido, os dados da realidade que compõe o quadro da disparidade socioeconômico e educacional expressam de forma contundente a emergência de nossa ação no cotidiano. Dos 14 milhões de analfabetos brasileiros, cerca de 9 milhões são negros. Em termos relativos, a taxa de analfabetismo da população branca é de 6,1% para as pessoas com 15 anos ou mais, e de 14% para os negros. Os indicadores apontam que 57,9% dos estudantes brancos, de 18 a 24 anos, estavam no nível superior, em 2007, contra 25,4% negros. Mesmo com a política de cotas em mais de 60 universidades públicas, a maioria dos jovens negros ainda está fora do ensino superior.
De acordo com o IBGE, a população de “pretos e pardos” superou a de brancos em 2007: 49,7% dos brasileiros são afrodescendentes, enquanto os brancos representam 49,4% da população.
A distribuição de renda entre os 10% mais pobres e entre o 1% mais rico mostra que, em 2007, os brancos eram 25,5% do total entre os mais pobres, e 86,3% entre os mais ricos. Já os negros representavam 73,9% entre os mais pobres, e apenas 12% entre os mais ricos.
O 20 de novembro tem uma importância histórica singular, na medida em que a história dos escravizados começa a ser efetivamente transcrita e reconhecida pelos historiadores e pela memória dos lutadores ao longo desses séculos. Tem também uma importância filosófica fundamental, pois longe de representar apenas uma leitura e práxis eurocêntrica, a fonte do pensar o humano tem como mola propulsora os espoliados dentro de um corte de classe, nos marcos marxianos, nos colocando não apenas na cronologia do processo escravagista brasileiro, mas nos devolve ao útero da história que é a mãe África.
Também do ponto de vista econômico, denuncia todo o processo de colonização e o lucro derivado deste processo, numa riqueza vermelha com o sangue dos escravizados pelos homens brancos e sob justificativas, inclusive teológicas, transforma homens em mercadoria, desmascarando o conteúdo do capitalismo que não tem limite para a acumulação do capital.  Do ponto de vista sociológico, resgata a verdadeira história do Brasil a partir dos que produzem a riqueza, colocando dialeticamente no seu devido lugar a leitura concreta da nossa história.
Finalmente, do ponto de vista do movimento negro, foi um grande passo para introduzir outras demandas dos negros e negras nas políticas institucionais e políticas de estado, que por mais que os escravistas tentem desmoralizar nossas lutas e referências históricas, não conseguirão apagar a verdadeira história escrita por quem viveu, lutou e morreu em nome desta causa.
Esperamos que neste dia continuemos parando a economia, dos senhores do capital, que as ruas sejam tomadas por negros e negras e todos e todas que são parceiros e solidários nesta luta contra a opressão de gênero etnia e de classe. Que o dia 20 de novembro seja todos os dias do ano no combate sem trégua a todas as formas e dogmas de opressão e discriminação historicamente perpetradas contra os pobres e oprimidos temporariamente pelos detentores do capital.

Aldo Santos - Ex-vereador por quatro legislatura em São Bernardo do Campo; Presidente da Associação dos Professores de Filosofia e Filósofos do Brasil; Coordenador da Secretaria de Direitos Humanos do Psol – SP; Membro da APROFFESP; militante da APEOESP e do movimento popular.

Referência bibliográfica
SANTOS, Aldo. Movimento Negro: embate político e jurídico
São Paulo: Dialógica, 2016

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