Quem era a misteriosa guerrilheira que acompanhou Che Guevara
Em 31 de agosto de 1967, na confluência do rio Masicuri com o rio Grande, na Bolívia, um pelotão de militares aguardava, escondido atrás de arbustos, que um grupo de guerrilheiros cubanos atravessasse as correntezas.
Joseba Elola
Imagem clássica de Che Guevara "El Guerrillero Heroico" tirada por Alberto Korda em 1960
Eram 17h20, e eles já esperavam há dez horas, cozinhando no calor, com mosquitos lhes comendo vivos. Com a ajuda de um camponês, prepararam uma armadilha para o pelotão de combatentes revolucionários que se aprontava para cruzar o rio.
O “grupo de Joaquín” atravessou o rio em fila indiana, com a água até a metade do corpo, e em alguns trechos, até o queixo. De repente, do meio das águas emergiu o belíssimo corpo de uma mulher magra, com camiseta de manga curta colada ao corpo, uma mecha de cabelos sobre o rosto. Era uma imagem quase irreal para esse grupo de militares que perseguiam Che Guevara pela floresta boliviana. Era ela, sim, a guerrilheira da qual falavam os jornais, a única mulher que fez parte da expedição revolucionária. O capitão Vargas Salinas dá ordem para atirarem e o tiroteio começa, as metralhadoras cuspindo chumbo sobre os corpos que, sobre a água, pareciam pinos de boliche.
Uma bala atravessou o corpo de Tânia, que levou a mão ao peito, à altura do coração e caiu sobre as águas. A correnteza arrastou seu corpo, com a mochila às costas; levou também seus segredos, a infinidade de segredos de uma mulher que teve três nomes, três identidades, que foi sonhadora, mestra do disfarce, artista da mentira, guerrilheira, espiã. Uma mulher cuja vida foi praguejada de mitos e lendas que o prestigioso historiador boliviano Gustavo Rodrigues Ostria se propôs a desvendar.
O reconhecido especialista na guerrilha de Guevara levou três anos para escrever “Tamara, Laura, Tânia – Um mistério na guerrilha de Che” (editado pela RBA), um livro baseado em várias entrevistas com protagonistas daquela época, em informes da Stasi, do exército boliviano, da CIA. A ambiciosa reconstrução, amplamente documentada, desmonta mitos e lendas, e não vacila em derrubar teses sustentadas por autores como John Lee Anderson, Paco Taibo II ou Friedl Zapata.
Sem ir mais longe, a própria cena da morte da guerrilheira foi narrada de maneira diferente. A revolução cubana construiu um mito, de uma versão feminina de Che, da corajosa guerrilheira que tentou disparar sua metralhadora quando os tiros começaram a soar tiros sobre as águas do rio Masicuri. Rodríguez Ostria nega: “ela não disparou nenhum tiro”, disse o autor boliviano em conversa telefônica desde Santiago do Chile, onde está realizando um trabalho de investigação para seu próximo livro. “Na guerrilha, era combatente apenas quem tinha fuzil. Ela tinha uma pistola. Recebia tarefas que não a expunham aos perigos da guerrilha.”
Rosriguez Ostria, autor de uma dúzia de livros, ex-reitor da Universidade Maior de San Simón e ex-vice-ministro de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, refutou também a lenda da suposta relação entre Guevara e Tânia. “Não foi amante de Che. Apenas conviveram um mês na guerrilha”. Foi entre março e abril de 1967. E sua relação, de fato, foi marcada pela reprovação do comandante ao fato de Tânia ter abandonado suas funções de espionagem para se incorporar à guerrilha. Construir uma relação entre dois mitos tão parecidos é uma tentação difícil de superar. Mas não foi assim, segundo sustenta o historiador. “Havia uma razão quase ética para isso: Guevara sabia que ela era companheira de Ulises Estrada. Entre os revolucionários, havia códigos em relação às mulheres dos outros. Che havia se exposto demais, sua liderança moral havia se carcomido.”
A lendária guerrilheira nasceu como Tamara Bunke em 19 de novembro de 1937, em Buenos Aires. Filha de um alemão e de uma russa, ambos comunistas, voltou à pátria paterna em julho de 1952, onde já aos 15 anos entrou para Juventude Livre da Alemanha (JLA). Pertenceu à temível Stasi, o todo-poderoso serviço secreto da Alemanha comunista, e depois de trabalhar para a representação cubana em Berlim, abandonou intempestivamente o serviço secreto para conhecer em primeira mão a experiência socialista da ilha. Rodríguez Ostria, depois de analisar informes de segurança da Alemanha Oriental, desmontou a tese, sustentada por escritores como o uruguaio José Friedl Zapata, de que ela viajou para Havana como espiã da RDA.
Sim, foi espiã, mas para o regime cubano. Sua plena integração à revolução e à sociedade cubanas fez com que ela fosse enviada a La Paz, com a autorização de Ernesto Che Guevara. Lá, ela se transformou em Laura Gutiérrez Bauer, uma mulher discreta e conservadora cuja missão consistia em se infiltrar o máximo que pudesse na sociedade boliviana. Para cumprir a missão ela até mesmo se casou com um engenheiro boliviano para conseguir a nacionalidade, uma coisa que Havana havia exigido dela. E isso porque o amor de sua vida estava na ilha, seu “negrito”, Ulisses Estrada. “Teve que entregar seu corpo por causa de suas ideias”, diz o historiador boliviano, “mas não foi uma Mata Hari.”
Foi uma espiã dormente. Ou seja, não tinha outra missão exceto se integrar e esperar alguma ordem para se colocar em ação. A vida aborrecida da capital boliviana e dos círculos pelos quais andava começou a cansá-la. Quando Che Guevara decidiu desembarcar no país andino com suas tropas guerrilheiras, Laura viu a oportunidade de sua vida, de transformar-se no que sempre quisera ser: Tânia, a guerrilheira corajosa.
“Foi uma mulher que vivia uma rivalidade entre a Laura Gutierrez que devia representar, a Tamara que foi e a Tânia que queria ser.”
Rodrigues Ostria se mostra particularmente satisfeito com a informação que conseguiu nas entrevistas com Paco, o único sobrevivente da emboscada em que Tânia morreu; e com a entrevista com o oficial Barbery, o número 2 do pelotão que a matou. Ele sustenta que Tânia, na verdade, fez mais trabalhos de enfermeira e secretária do que de guerrilheira. Che não queria mulheres na linha de frente.
Mas Tânia se empenhou em estar ali, e morreu metralhada, cruzando um rio. Foi a única mulher num exército de revolucionários barbados. Inevitavelmente, transformou-se em mito.
Tradução: Eloise De Vylder
Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/
Publicado no blog controversia.22 de Junho de 2011 às 16h 00m • Ricardo • Arquivado sob Geral
Nenhum comentário:
Postar um comentário