RACISME AU BRÉSIL: um passé qui ne passe pas
Um passé présent
Alguns dias atrás, estávamos eu e uma
amiga no metrô em São Paulo, conversando sobre as últimas publicações racistas
que haviam alardeado as redes sociais. Postagens como a do youtuber Cocielo, que
comparava o jogador de futebol da seleção francesa Kylian Mbappé a um
“assaltante de arrastão” e o post do humorista Jacaré Banguela que equiparava o
ator Jaden, filho de Will Smith, a um flanelinha. Discorríamos então com
assombro, sobre os comentários dos internautas, os quais sob a égide do
aparente anonimato da internet defendiam os digital influencers. Esses
internautas inclusive alegavam que havia certo exagero em atribuir racismo
àquelas publicações, pois, segundo eles, nenhuma das publicações mencionava a
cor da pele ou xingava o jogador ou o ator de macaco ou qualquer ofensa explícita. Ignoravam eles, portanto, o
racismo sutil característico na sociedade brasileira.
- É um passado que não passa. – minha amiga disse.
- É um passado que ainda se derrama
sobre o presente e continua fazendo vítimas.
– eu respondi.
Que passado-presente é esse que nós duas
nos referíamos? Por quanto tempo esse
pregresso ainda avançará sobre o hoje e o porvir?
É um passado não tão passado assim que
gerou, nutriu e naturalizou uma ideologia que hierarquiza a própria condição
humana. Uma ideologia sustentada numa concepção seletiva de cidadania e que
evoca de pronto a ideia de que o negro no Brasil tem o seu lugar demarcado na
sociedade e que ali está por sua culpa ou vontade e não por conta de uma
configuração social bem rígida que o colocou num cenário de exclusão. Essa
marginalização racial submetida à naturalização e à normalidade se torna
risível ou objeto de gracejos justamente para aqueles que gozam de algum
privilégio, isto é, os brancos, majoritariamente.
Nos dias seguintes a essa conversa, eu continuei
acompanhando os noticiários e outras denúncias e relatos de racismo apareceram,
entre os quais, a filha de dois anos do ator global André Luiz Miranda, a filha
de Ivo Meirelles, que teria sofrido racismo em uma loja da C&A, a
secretária da editora Patuá, que durante a Flip sofreu racismo por parte do
editor e ex-curador do Prêmio Jabuti, José Luiz Goldfarb e os milhares de comentários racistas no filme publicitário de dia
dos pais divulgado pelo O Boticário no YouTube.
Confrontar piadas e comentários racistas
gera polêmica porque entramos num embate com uma ideologia naturalizada e
enraizada na sociedade e inquestionavelmente em nós, pois naturalmente, sem
muito esforço e reflexão, associamos o negro ao pobre e incapaz, ao bandido, ao
garoto que te aborda no semáforo para pedir dinheiro, ao menino sujo e
malvestido que guarda ou limpa o seu carro, como fez o comediante Jacaré
Banguela, ou aos garotos pretos e pobres que fazem arrastão nas praias e
avenidas, como fez o youtuber Cocielo.
Essas imagens, ou melhor, essas visões enrijecidas de mundo, são
delineadas por uma ideologia racial não apenas no campo consciente, mas também
na demarcação de lugares imobilizados socialmente. O que tanto os dois digital
influencers, quanto os outros envolvidos em denúncias ou em comentários
racistas fizeram foi reproduzir preconceitos historicamente construídos e enraizados
como naturais. E a medida que os negros e negras aumentam suas presenças em
espaços antes ocupados prioritariamente por brancos, essa presença gera um
certo mal estar naqueles que pensam que o negro e o branco, cada um tem o seu
lugar fixo e imóvel, de maneira que o racismo, antes mitigado e contido,
retorna de maneira mais exacerbada. É o passado que não passa.
A título de inspeção convém aqui evocarmos
esse passado:
Perquirindo suas origens, o Brasil, como
um corpo social e político, foi concebido na acumulação de bens e riquezas
através da exploração do trabalho de negros e indígenas. Nessa concepção, o
esqueleto que sustentou esse corpo precípuo por quase quatro séculos foi o
escravismo colonial. Neste registro, o racismo está na gênese do Estado
brasileiro.
No final do século XIX, ocorre a abolição
dos escravos, entrementes sem qualquer projeto de inclusão dos africanos e dos
seus descendentes nesse corpo social. É importante frisarmos que passamos de
colônia para um país “independente” de
maneira mansa e plácida, sem quaisquer saltos ou rupturas nesse corpo político,
uma vez que preservamos os mesmos instrumentos de dominação do período
colonial: os então senhores de escravos tornaram-se herdeiros diretos das
terras, fundando oligarquias e monopólios de terras, mantendo as estruturas
aristocráticas intactas. É crucial lembrarmos que a própria abolição foi
organizada pela dominante, os fazendeiros e pequenos burgueses que fizeram de tudo para asfixiar e emudecer
qualquer movimento abolicionista gerado pelos escravos ou escravos libertos.
Foi essa mesma elite, entusiasmada com as leituras sobre as teorias científicas
de eugenia subsidiárias à ideia de pureza racial, que disseminou a ideia de
branqueamento, adaptada para a população brasileira. Dessa maneira, foi
colocada em prática a ideia de “melhorar” a população desse país por meio da
mestiçagem. Todavia é inegável, como
muito bem sabemos, que o programa político de miscigenação não engendrou uma
nação pluriétnica ou uma democracia racial. Pelo contrário, ocasionou a fragmentação
da identidade negra brasileira, fragmentação esta que por muito tempo enclausurou
o valor e a autoestima de milhões de afrodescendentes desse país. Cumpre, portanto, enfatizarmos que essas
ideias de clarear a população brasileira baseada em “edifícios intelectuais”,
cujos resquícios ainda hoje proliferam em muitas consciências, também se
manifestaram no incentivo político à vinda dos europeus para a ocupação de
postos de trabalho que excluíram os negros do mercado formal de trabalho,
gerando um contingente de gente miserável obrigada a se submeter às piores
condições de trabalho, restando ao negro um cotidiano massacrante e as agruras
sociais. Não podemos olvidar que sob a égide da abolição, a população negra foi
deixada de escanteio, a sua própria sorte. Certamente, a libertação evadiu os
negros de sua condição de coisa-objeto, suprindo-lhes um desejo prolixo de
cidadania, no entanto, essa cidadania nunca foi plena e universal, como é a do
homem branco, mas restrita e parcial. Os
escravos libertos e seus descendentes tornaram-se semi-cidadãos ou cidadãos
hierarquicamente inferiorizados, pois seus direitos básicos não são incólumes.
Atentemos: hoje, os afro-brasileiros são
mais da metade da população brasileira, mas se olharmos a paisagem social
veremos que eles são sub-representados ou praticamente invisíveis nas
estruturas de poder e nos meios de comunicação. Os negros foram libertados em
1888, mas o racismo ainda distribui de forma desigual a renda e o poder, subjugando
a população negra e parda à exploração. Cumpre enfatizar ainda que nessa
sociedade ideologicamente racista, a subalternidade dos negros é considerada
“normal” e “aceitável”, pois está dentro da “regra do jogo de opressão” que
verbaliza que todos nós somos iguais e temos as mesmas condições, ponderações
estas que divergem das assimetrias econômicas, sociais e políticas da sociedade
brasileira.
É essa composição social, criada e
naturalizada no período colonial que atravessou cinco séculos e que vigora até
hoje. É esse arranjo que configura as nossas relações sociais e que recria e
enrijece desigualdades e privilégios.
Compreender por que piadas aparentemente
inocentes contra negros assumem conotações racistas, implica, primordialmente,
reconhecer o hiato existente entre a cidadania do branco e a frágil cidadania
do negro. Compreender porque ofensas raciais ainda perseveram 130 depois da
abolição implica perceber como essa clivagem entre brancos e negros perpassa
toda a História do nosso país, embora a mídia e a elite tentem contrair essa
memória.
Esse passado de exclusão política,
econômica e social não passa, isto é, não se tornou de fato passado, mas se faz
sentir presente em nós, pretos, pobres e favelados, todas às vezes que os
nossos direitos são negados, todas às vezes em pessoas riem dessa situação,
todas às vezes em que pessoas fazem comentários assentindo a essa exclusão.
*Luanda Julião é professora de filosofia e história da rede pública estadual. Diretora da Aproffesp, Doutoranda em filosofia e escritora.
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