Quando a escola deixar de ser uma fábrica de alunos
A escola de massas, onde um professor ensina ao mesmo tempo e no mesmo
lugar dezenas de alunos, nasceu com a revolução industrial mas chegou ao século
XXI. Em dois séculos, mudaram os estudantes, mudou a sociedade e mudou o
mercado de trabalho. Quando mudará a escola?
A escola de massas, onde um professor ensina ao mesmo tempo e no mesmo
lugar dezenas de alunos, nasceu com a revolução industrial mas chegou ao século
XXI. Em dois séculos, mudaram os estudantes, mudou a sociedade e mudou o
mercado de trabalho. Quando mudará a escola?
A escola do ano 2000
imaginada pelos ilustradores franceses Jean Marc CotÍ e Villemard em 1899
Crianças sentadas em fila, olhando para a frente. Mãos cruzadas em cima da
mesa, numa postura inerte. A secretária do professor fica no extremo esquerdo
da sala de aula. Não está a ensinar. Os alunos têm uns capacetes de metal,
ligados por uns cabos eléctricos a uma máquina onde o professor coloca uns
livros. A função desse aparelho, compreende-se pela imagem, é a de extrair a
informação dos manuais e introduzi-la directamente nos cérebros dos jovens,
através da transmissão da energia eléctrica. Foi assim que os ilustradores
franceses Jean Marc Cotê e Villemard imaginaram e retrataram a escola do ano
2000, num postal que era parte de uma série produzida para a Exposição
Universal de Paris, em 1900.
A gravura é de 1899 e foi utilizada por João Barroso, especialista em
políticas de educação e formação da Universidade de Lisboa, num trabalho que terá
sido apresentado em São
Paulo , ontem, intitulado A
Escola e o Futuro: As Mudanças Começam na Sala de Aula.
A escola do ano 2000 é imaginada, no final do século XIX, como um
prolongamento da escola então existente. Cotê e Villemard não vislumbraram uma sala
de aula com um funcionamento completamente diferente por causa da
electricidade. Em vez disso, desenharam a aula de 1899 - um local onde os
jovens recebem, de forma passiva, o conhecimento que lhes é transmitido pelo
professor - e acrescentaram-lhe uma nova tecnologia, que lhes permitiria,
simplesmente, ter a mesma informação, embora com a recepção facilitada.
Vítor Teodoro, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da
Universidade Nova de Lisboa, tem outra pintura - de uma sala de aula ainda mais
antiga - na cabeça. O professor está num púlpito. Lá no alto, consegue ver
todos os alunos, que se dispõem à sua frente, sentados por filas. Mas nem todos
olham para ele. Uns conversam com os colegas do lado. Uns têm o olhar perdido
noutra direcção. Um deles dorme apoiado no braço. Vítor Teodoro está a pensar
na iluminura pintada por Laurentius de Voltolina no século XIV, que retrata
Henrique da Alemanha a dar uma aula na Universidade de Bolonha, mas que, de
acordo com o professor, podia retratar uma sala de aula dos dias de hoje.
A educação que hoje conhecemos tem duas bases, explica o professor da
FCT-UNL: a da religião e a do apprenticeship
- a aprendizagem por integração numa comunidade, que vem da tradição dos
ofícios e dos mestres. Para Vítor Teodoro, durante o século XX, predominou o
modelo religioso. A escola adoptou das igrejas o estrado e o púlpito e o
professor, à semelhança do padre, começou a transmitir, expositivamente, a
informação aos alunos, que a recebem de uma forma passiva. Ensina-se o grupo e
não o indivíduo, o que, muitas vezes, leva a que alguns jovens não compreendam
o que está a ser ensinado e percam o interesse: "Há 50 anos, as pessoas
repetiam as orações em latim e não percebiam o que estavam a dizer. Hoje,
acontece o mesmo com os alunos."
Há muito tempo que a escola se concentra em ensinar aos alunos as
competências básicas da matemática, da escrita e da leitura. Agora, estas
aprendizagens básicas já não são suficientes. No livro The global achievement gap,
Tony Wagner, investigador de Inovação na Educação no Centro de Tecnologia e
Empreendedorismo da Universidade de Harvard, descreve o que está a ser ensinado
aos jovens nas escolas, por oposição ao que eles deveriam estar a aprender para
triunfarem nas suas carreiras, numa economia global.
Tudo se passa nos mesmos lugares,
ao mesmo tempo e da mesma maneira. Uma escola é uma colecção de salas de aula e
o ensino é uma repetição de actividades pré-formatadas, iguais todos os anos
João Barroso, da Universidade de Lisboa
Wagner defende que a escola deve desenvolver sete "competências de
sobrevivência" necessárias para que as crianças possam enfrentar os
desafios futuros: pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas,
colaboração, agilidade e adaptabilidade, iniciativa e empreendedorismo, boa
comunicação oral e escrita, capacidade de aceder à informação e analisá-la e,
por fim, curiosidade e imaginação.
Uma colecção de salas
Teresa Franco tem 15 anos e a partir de Setembro vai frequentar o 10.º ano
no Liceu Rainha Dona Amélia, em Lisboa. Decidir-se por uma área de estudos foi
complicado, diz: "Não tenho a certeza de nada porque não tenho
experiência." Teresa fez um intenso trabalho de pesquisa e criou uma lista
com os cursos que a interessavam: Psicologia, Serviço Social, Dança, Escultura,
Pintura, Design de Ambientes, Design de Comunicação, Design de Moda,
Fotografia, Ciências da Educação, Jornalismo... Áreas variadas e muitas delas
relacionadas com a criatividade. Fez testes psicotécnicos e falou com
profissionais de várias áreas para perceber com qual delas mais se
identificava. Acabou por escolher o curso de Artes. Talvez um dia venha a ser
designer.
Quem sabe se por causa das dificuldades que teve em decidir-se por um
curso, Teresa defende que a escola deveria promover a interacção com pessoas
com experiência nas diferentes áreas profissionais. Defende que aquilo que faz
mesmo falta na escola é uma componente mais prática. Sugere, por exemplo, que o
horário da tarde fosse ocupado com workshops
de fotografia, desporto, artes... Quanto ao ensino das disciplinas, deveriam
ser incentivados outros métodos para além do "decorar, decorar,
decorar". É por essa razão que muitos dos seus colegas "odeiam
História": "Deviam encontrar uma forma que nos cativasse. Em vez de
nos obrigarem a decorar, podiam contar-nos mesmo uma história - levar-nos a
falar com historiadores ou pessoas que tivessem vivido um determinado
acontecimento."
Até aos seis anos, frequentou uma escola inglesa, a English Preparatory
School. Como explica a sua mãe, Cristina Rebocho, o ambiente era descontraído e
a auto-estima das crianças estimulada: "Ensinavam muito através da
brincadeira." Os momentos de avaliação aconteciam de forma discreta. As
crianças pensavam que estavam a fazer uma ficha de exercícios normal, quando,
na verdade era um teste, e assim não ficavam tão nervosos. No ensino da língua
- neste caso, do inglês - os erros ortográficos das primeiras composições não
eram corrigidos. "Para que eles pudessem desenvolver a imaginação e a
criatividade", explica Cristina Rebocho.
Teresa pensa que os anos que passou nesta escola lhe deram "estruturas
sólidas". Também por causa dessa experiência, está convencida de que o
ensino deveria ter uma base artística. Alguns colegas dizem-lhe que tinham
jeito para as artes quando eram pequenos, mas como não tinham tempo foram-no
perdendo. Para Teresa, é uma pena porque, diz, as artes "são muito úteis
para que nos consigamos expressar e estar mais à vontade na relação com os
outros. E são libertadoras".
A pedagogia tradicional da escola uniformizada está na base da criação da
escola de massas a partir do século XIX e não sofreu alterações radicais desde
então. Assenta na homogeneização dos alunos e na subordinação aos princípios da
tragédia grega: unidade de espaço, de tempo e de acção - "Tudo se passa
nos mesmos lugares, ao mesmo tempo e da mesma maneira. Uma escola é uma
colecção de salas de aula e o ensino é uma repetição de actividades
pré-formatadas, iguais todos os anos", de acordo com João Barroso.
Os vídeos Khan
A revista Economist,
num artigo da sua edição de 29 de Junho, Education
technology, mostrava-se optimista relativamente à possibilidade de
a Internet ser, por fim, capaz de fazer aquilo que a escola massificada nunca
conseguiu - adequar-se às necessidades individuais de cada aluno. A revista
britânica considera que os recursos online
- desde os programas que monitorizam o desempenho dos alunos aos vídeos com
exercícios - podem estar a transformar profundamente a educação.
Um dos exemplos referidos pela revista foi o da Khan Academy - um site que disponibiliza
gratuitamente vídeos com explicações, criado pelo norte-americano Salman Khan.
Os vídeos possibilitam a metodologia da "aula invertida" - em vez de
assistirem à exposição do professor na sala e realizarem os exercícios em casa,
os alunos assistem aos vídeos em casa e realizam os exercícios na sala de aula.
Um exemplo, segundo a Economist,
de como algumas inovações podem transformar a educação
convencional.
Em Abril deste ano, a Fundação Portugal Telecom importou a ideia. Para
Teresa Salema, responsável pela Academia Khan em Portugal, o futuro da educação
pode passar por aqui.
A iniciativa surgiu devido à percepção de que "os alunos não estão bem
preparados para enfrentar a sociedade da informação" e da necessidade de
introduzir novos estilos de aprendizagem: "A sala de aula não muda há 300
anos, mas as crianças são diferentes", afirma à Revista 2.
Até ao início do próximo ano lectivo, a PT espera ter disponíveis 400
vídeos de Matemática. Depois, e até 2014, deverão ser adaptados vídeos de
Física, Química e Biologia. As explicações foram traduzidas do inglês e a
adaptação aos conteúdos dos programas nacionais foram feitos com a ajuda da
Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM). As prioridades situaram-se nas áreas
mais científicas, onde os resultados escolares a nível nacional são mais
negativos.
Como explica Teresa Salema, os vídeos da Academia Khan permitem que o
professor se concentre "na orientação, na relação com os alunos e na
tutoria individual, que constituem os papéis mais nobres da profissão". E
acrescenta que a responsabilidade está, cada vez mais, do lado dos alunos, que
têm de querer aprender: "O professor deve incentivar o aluno, mas este não
pode ser passivo."
Vítor Teodoro, que já recorreu aos vídeos da Academia Khan e a outros
semelhantes nas suas aulas, ressalva que, se a utilização destes instrumentos
não for feita de forma adequada, podem ser "mais do mesmo", uma vez
que foram "pensados para o modelo "missa"". "Quando
projecto um vídeo, posso dizer: "Vejam e aprendam." Ou posso parar a
apresentação e dizer: "O que é que isto quer dizer?" "Vamos
transferir este esquema para o papel"." De acordo com João Barroso,
transformações como a da "aula invertida" são "pequenas
alterações cosméticas, que não tocam no essencial, que é a pedagogia".
Três futuros possíveis
Para João Barroso, os problemas e os desafios que se colocam à escola fazem
parte de uma evolução histórica e há três futuros possíveis para o processo de
escolarização: a hiperescolarização, a desescolarização e a refundação, todos
eles potenciados pela utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TIC).
A tendência da hiperescolarização está relacionada com o reforço da escola
homogénea. Neste caso, as novas tecnologias servem apenas, nas palavras de João
Barroso, para fazer o upgrade
daquilo que já está a ser realizado. "A sala de aula continua organizada
da mesma maneira. O que eu vou melhorando são escolhas que já fazia. Isso não é
mau. É o que os professores têm feito com o retroprojector, com o vídeo...
Pequenas transformações nas práticas docentes que têm permitido que se passasse
da disposição frontal para a disposição de grupo e que os alunos façam
trabalhos de grupo."
Deviam encontrar uma forma que
nos cativasse. Em vez de nos obrigarem a decorar, podiam contar-nos mesmo uma
história - levar-nos a falar com historiadores ou pessoas que tivessem vivido
um determinado acontecimento
Teresa Franco, 15 anos, estudante
A defesa da desescolarização está associada à publicação, em 1971, dos
livros The School is
Dead, de Everett Reimer, e Deschooling
Society, de Ivan Illich, onde se criticava a escola como
instituição. Reimer considerava que a "salvação" da educação passava
pelo fim da escola, tornando-se necessário devolver o acto de educar aos pais,
à comunidade e à livre iniciativa. Illich, por sua vez, defendia que a educação
universal por meio da escolaridade não era possível. Actualmente, este
movimento da desescolarização foi recuperado pelos defensores do homeschooling (ensino
doméstico), em que as famílias optam por educar os seus filhos em casa. Normalmente ,
o homeschooling
está associado a perspectivas mais conservadoras, em que se defende o regresso
à vida comunitária das famílias. Como explica João Barroso à Revista 2,
"as empresas de software
educativo têm vindo a apostar nesse público, fornecendo pacotes de programas
educativos organizados em função dos vários anos de escolaridade para que os
adultos em casa possam colocar os jovens em frente ao computador e aprender com
esses programas".
A escola não está morta
João Barroso garante que "a escola não está morta, não desapareceu e
será recuperada". Para o investigador, o futuro desejável é o da
refundação: "Há uma necessidade de refundação da escola para que ela possa
entrar na era digital, mas essa refundação não se faz unicamente com a
tecnologia, faz-se também com a alteração das práticas pedagógicas, com a
alteração do currículo e alterando o trabalho dos professores."
Esta refundação (o termo corresponde, também, à designação do programa
aprovado este ano pela Assembleia da República francesa para preparar a escola
para a era digital - La
refondation de l"École) assemelha-se a um modelo com um
século: o movimento pedagógico conhecido por Educação Nova, que se desenvolveu
nos primeiros anos do século XX e que teve o seu impulso com a publicação do
livro Transformemos a
Escola, de Adolfo Ferrière. Este movimento pretendia assegurar uma
educação à medida de cada aluno e caracteriza-se pela defesa do
"desenvolvimento das competências individuais, da aprendizagem
interactiva, da escola criativa e activa, apostando na autonomia do
aluno", diz.
"Hoje, também é necessário transformar a escola de acordo com os
mesmos princípios e em benefício de uma educação à medida de cada aluno,
garantindo a equidade, a igualdade de oportunidades e a inclusão social",
escreve o investigador no texto A
Escola e o Futuro. As novas ferramentas podem permitir realizar
estes ideais: "Todas as inovações pedagógicas tentadas durante o século XX
- como a da Escola da Ponte (uma escola portuguesa, no distrito do Porto,
organizada segundo uma lógica de projecto e de equipa, onde não existem salas
de aula, no sentido tradicional, mas sim espaços de trabalho), a pedagogia
Freinet (proposta pedagógica para modernizar a escola, surgida em 1924, que dá
primazia ao desenvolvimento do espírito crítico, utiliza a curiosidade das
crianças como ponto de partida para a aprendizagem, feita em cooperação) -
foram muito localizadas. As novas tecnologias possibilitam que as inovações
pedagógicas se desenvolvam de maneira massificada."
Mas, como explica Vítor Teodoro, "nada se passa fora do enquadramento
tecnológico, mas achar que se pode usar a tecnologia para provocar a mudança é
ingénuo. O que temos de ter é uma lógica daquilo que queremos para a
escola".
Se não é por mudar a tecnologia que muda a escola, também não é pelas
mudanças que ocorrem a nível político que a escola se vai transformar, uma vez
que, como afirma João Barroso, "as grandes reformas políticas são feitas
de cima para baixo, acabando por ficar à porta da sala de aula". As
mudanças que estão em curso vão ter de envolver, obrigatoriamente, cinco
dimensões: a política, a tecnológica, a pedagógica, a curricular e a da
formação de professores.
O especialista em políticas da educação e formação considera que faz
sentido pensar o futuro da escola em função das mudanças que ocorrerem dentro
da sala de aula. "O futuro da escola é a mudança da organização do ensino,
da relação pedagógica entre professores e alunos, da organização do tempo, do
espaço, do currículo. No fundo, a transformação da sala de aula, que é o núcleo
duro da escola."
O modelo finlandês
Quando se fala em mudar a escola e a educação, muitos políticos, educadores
e pedagogos referem, de uma maneira geral, o sistema educativo finlandês. Não é
por acaso: a Finlândia ocupa o primeiro lugar ou os lugares cimeiros nas
diferentes categorias testadas pelo Programme for International Student
Assessment (PISA), que procura medir as capacidades de leitura e de literacia
matemática e científica dos jovens com 15 anos nos 34 países da OCDE.
No documentário The
Finland Phenomenon: Inside The World"s Most Surprising School System,
de 2010, Tony Wagner quis perceber as razões do sucesso deste sistema de
ensino. Através de visitas a salas de aula e entrevistas a professores e
alunos, o investigador chegou a algumas conclusões. Numa das primeiras cenas do
documentário, Wagner conta aquilo a que assistiu numa sala de aula da segunda
classe: nas semanas anteriores, as crianças tinham aprendido a distinção entre
energias renováveis e não renováveis e, no momento da visita do investigador, a
professora pediu aos alunos que criassem um espectáculo de marionetas,
imaginando que a electricidade falhara em suas casas e aquilo que deveriam
fazer nessa situação. "Experiências da vida real, conceitos abstractos e
artes - tudo integrado no mesmo currículo", comenta Wagner em voz-off.
Um dos professores explica ao investigador aquilo que considera importante
na educação dos jovens: "Compreender as razões por detrás das coisas, ler,
sonhar, falar, encontrar soluções por si próprio."
Há 50 anos, as pessoas repetiam
as orações em latim e não percebiam o que estavam a dizer. Hoje, acontece o
mesmo com os alunos
Vítor Teodoro, professor da FCT-UNL
Ao longo do filme, Tony Wagner chega a outras conclusões. As salas de aula,
repara, são pequenas, as turmas têm cerca de 20 alunos e o ambiente é íntimo e
relaxado, com as crianças a tratar os professores pelo primeiro nome. Há menos
aulas expositivas durante o dia e mais tempo para actividades de projecto e
para aprofundar as aprendizagens.
Cada escola goza de grande liberdade para desenhar os seus próprios
currículos. No sistema educativo finlandês, os jovens têm muito poucos
trabalhos de casa e são submetidos a poucos testes e exames.
Na Finlândia, a profissão docente é altamente prestigiada. Uma das razões
para que isto aconteça deve-se à elevada exigência da formação dos professores.
Só os melhores alunos conseguem entrar numa das oito universidades que preparam
docentes. Estudam durante cinco anos, tempo que inclui o mestrado, e treinam
observando os seus professores a ensinar.
Mas, para Wagner, o aspecto mais surpreendente de todos é o facto de o
sistema se basear na confiança: "O Governo confia nos municípios para
adaptarem o currículo nacional de acordo com as necessidades locais. Os
municípios confiam nos professores e nas escolas para que estes façam aquilo
que é correcto. Os professores confiam na capacidade de os alunos usarem o seu
tempo de forma correcta e a Internet e outras tecnologias de forma
responsável."
Acabar com as salas?
A sala de aula não muda há 300
anos, mas as crianças são diferentes
Teresa Salema, Academia Khan Portugal
Há outros exemplos de "escolas do futuro". Através delas, é
possível perceber como é que as salas de aula estão a mudar. E as mudanças
passam, muitas vezes, pelo próprio desaparecimento do espaço tradicional da
sala de aula. Na Vittra Telefonplan, em Estocolmo, em vez de salas de aula,
praticamente não existem divisões, à excepção de algumas salas fechadas, para
que possam ser à prova de som, destinadas à prática da dança ou do canto ou
para a visualização de filmes. Os estudantes sentam-se em sofás almofadados e
de formas arredondadas, utilizam mesas que se assemelham às que existem nas
cafetarias, onde os alunos podem comer ou trabalhar, ou fazer as duas coisas em simultâneo. A
organização do espaço foi pensada para permitir a livre circulação dos
estudantes. Os espaços diferenciados pretendem estimular as crianças a aprender
à sua maneira.
Segundo uma reportagem na revista Exame
(Brasil), na Escola Orestad, em Copenhaga, existem algumas salas de aula
tradicionais, mas 50% das actividades são realizadas em espaços abertos, onde
os alunos resolvem os exercícios em pequenos grupos.
Na Bélgica e nos Estados Unidos, surgiram laboratórios para testar mudanças
profundas na forma de organizar o espaço e o trabalho. Em Bruxelas, a
associação European Schoolnet, criada pelos ministros de Educação da União
Europeia para encorajar as escolas a optimizar a utilização das novas
tecnologias, criou o Future Classroom Lab, onde existe uma sala de aula aberta
com cinco zonas adaptadas a diferentes actividades: recolha e tratamento da
informação, comunicação, divulgação e debate e produção multimédia. O projecto
TEAL (Technology Enable Active Learning), no MIT, em Boston, tem salas
compostas com mesas redondas, todas equipadas com computadores. O professor
fica no centro da sala. Os estudantes trabalham em grupo e ensinam-se uns aos
outros.
João Barroso resume à Revista 2 o que acontece na maior parte destes
espaços: "Os alunos não se dividem por disciplinas, mas por actividades -
os que estão a trabalhar, os que estão a dialogar, os que estão a recolher
informação, os que estão a fazer trabalho autónomo, os que estão a fazer
trabalho de grupo, aqueles que estão a desenvolver conceitos, aqueles que
praticam exercícios. Os espaços são sobretudo abertos e a sua estrutura
central, para além da presença da tecnologia, são grandes mesas redondas para
nove, dez alunos." Para além da tecnologia, aquilo que é mais valorizado é
o convívio, o debate e a acção, explica.
Isto significa que "a dimensão da relação humana é extremamente
valorizada na idealização da escola do futuro, do ponto de vista espacial,
organizativo e temporal". João Barroso tem uma visão contrária àquela que
acredita que as novas tecnologias podem levar ao isolamento dos adolescentes,
quando estes passam horas em frente ao computador: "Estas tecnologias
podem ser geridas de uma maneira individualista e de autofechamento, mas, por
outro lado, convidam ao debate, à discussão, ao diálogo."
O papel do professor
E é também aqui que entram os professores e a escola, que, segundo este
especialista, "tem um papel fundamental em educar os jovens no uso das
tecnologias de informação". Não se trata de ensinar as crianças e os
adolescentes "a utilizar o computador, os smartphones ou o iPad", diz. Se o
papel do professor se resumir a ser um mediador entre o aluno e o computador,
passamos a ter um professor que não é professor, mas um
"operacional".
Segundo João Barroso, o professor tem de ser um mediador, sim, mas
"entre o aluno e o conhecimento", assegurando "situações
criativas para o uso das tecnologias". Desta forma, o docente mantém a
imagem "do adulto junto do jovem, do professor reflexivo que pensa nas
suas práticas e que procura actualizá-las, do porteiro do conhecimento e
daquele que garante os valores da educação pública na escola".
Achamos que a educação é melhor
se for uniformizada, o que é uma contradição com o mundo em que vivemos, em que
só aqueles que se diferenciam é que arranjam emprego
António Dias de Figueiredo, Projecto
Minerva
Para além disso, as novas tecnologias, em vez de diminuírem o estatuto do
professor, podem aumentá-lo: "Hoje o professor perde muito tempo com
tarefas menores do ponto de vista educativo, e a tecnologia pode permitir
aliviar o professor dessas actividades rotineiras e pouco significativas do
ponto de vista da profissão docente e deixá-lo livre para aquilo que é
fundamental: a relação com a criança e com o jovem no acesso ao conhecimento",
diz o investigador.
Para António Dias de Figueiredo, responsável pela fase-piloto do Projecto
Minerva, que consistiu na introdução das TIC nas escolas do ensino básico e
secundário, um projecto nacional de renovação pedagógica só é possível se
dermos confiança aos docentes e criarmos modelos de organização em que seja
possível dotar os professores de autonomia: "Se lhes for dada a hipótese
de agirem como pessoas inteligentes e não como "funcionários"... Um
professor apaixonado consegue fazer milagres."
Mas para que a escola mude, é necessário que algo mude também junto dos
professores, defende Vítor Teodoro. A formação dos professores tem de sofrer
alterações para se aproximar mais da formação dos médicos, por exemplo: "A
aprendizagem das profissões que envolvem interacções com outras pessoas deve
fazer-se mais pela integração num grupo, pelo acompanhamento, pelo exemplo e
pela discussão e análise das situações." Ou seja, os futuros professores
deveriam aprender através de casos concretos: assistindo a aulas reais, por
exemplo, e não recebendo aulas sobre como se ensina.
Para Vítor Teodoro, o ensino devia ser, cada vez mais, uma actividade de
grupo, com equipas que preparam os materiais e as aulas em conjunto. Segundo
o professor, isto é válido tanto para a formação dos professores como para a
prática profissional.
Precisamos de disciplinas?
Ao mesmo tempo que muda a pedagogia e a tecnologia, o currículo também tem
de mudar. João Barroso defende que os currículos devem desenvolver competências
transversais e que, ainda que continuemos a falar de disciplinas, o ensino não
precisa de estar organizado assim: "As tecnologias podem potenciar
actividades transdisciplinares e interdisciplinares, não segmentando os
saberes, como hoje acontece na organização disciplinar." Os momentos de
transmissão do conhecimento continuariam a existir, mas seriam mais reduzidos:
"Há o tempo necessário para aquilo que são os conceitos-chave e depois
todo o grande trabalho é na operacionalização desses conceitos - é aí que se
resolvem as dúvidas e se inter-relacionam os conceitos."
Para Vítor Teodoro, o modelo da missa que tem dominado a educação deve ser
combinado com o modelo do apprenticeship,
introduzindo-se bons laboratórios, uma forte componente prática, uma forte
componente artística, desenvolvendo o trabalho de projecto dos alunos e
colocando a ênfase no trabalho com pequenos grupos.
Segundo o professor, "isto é o oposto do que está a acontecer em
Portugal". Como explica à Revista 2, a escola está a ser transformada numa escola
mínima. A função tradicional da educação de empowerment
tende a ser cada vez menor e tudo aquilo que está relacionado com as expressões
artísticas, como o desporto, a arte e a música, estão a desaparecer, afirma
Vítor Teodoro.
A escola precisa de mudar, mas essa mudança vai ser na direcção errada,
lamenta: "Vai mudar para um sentido mais pobre e utilitário - as crianças
saem da escola com uma utilidade meramente económica."
Nenhum comentário:
Postar um comentário